domingo, 22 de julho de 2007


imagem de F. Monteiro


tenho frio meu amor, a chuva não veio visitar-te.
de noite as pedras amaciam a tepidez das mãos
virá algum amante revolver as horas?
de repente a cidade apagou-se do meu peito
todos os rostos familiares apodreceram
inequívocos de boca aberta contra paredes imensas.

no chão da fábrica, onde estão costurados
os fetos invisíveis do medo, pernoitam
as inevitáveis aves da tua infância terrena.
deixo-me ficar entre os temíveis sulcos do voo
povoada pelos portões de ferro do útero.

lembro-me de existires perto dos rios.
dentro de mim
lembro-me de existires nos pés dos estranhos
que atravessavam a rua apressadamente
para lá da compreensão do ossos.

há muito que mastigamos eternas ausências
e observamos [absortos] a inevitabilidade das coisas
invocando o nome de deus como uma doença

diz-me se viverá latejante o coração perto da boca,
ténue e húmido como esta ansiedade que nasce na
soleira da porta de tua casa.



cláudia ferreira

sábado, 14 de julho de 2007



imagem de Geoffrey Agrons


noutro dia,
talvez cheguemos ao ponto
de querer conversar sobre as aves
quem sabe,
sobre o mundo inteiro
ou a palma da mão adormecida

falar sobre o esquecimento
como se nada mais nos magoasse.
viessem algumas folhas amarelecidas
cair sob o nosso desespero
e não continuariamos calados
no absurdo quotidiano.

noutro dia,
quem sabe.
talvez ver-te chegar
pelo simples facto
de o querer tanto.



cláudia ferreira

the way young lovers do

imagem: René Magritte, The Lovers



quando me chegaste ao corpo
não vinhas preparado para a chuva
toquei os teus lábios
e fechando a mão
guardei todos os teus sorrisos.

no lado mais fundo
dos ecos
guardei as tuas palavras
como agulhas atravessadas
nos lugares
da garganta.

hoje, do que trago
em mim
entrego-te os dias
e com eles
o mapa de todas as minhas
cicatrizes.


cláudia ferreira

quinta-feira, 5 de julho de 2007






só não poderás sobreviver ao fulgor das artérias em torno da casa
quando a abandonas junto às crianças descalças e sujas do recomeço.
talvez consigas sentir uma bala movimentar-se no interior das gengivas
quando inspiras o ar morno do entardecer junto às silvas ensanguentadas

morriam longas as palmas das mãos de te acenar numa estação estrangeira
com o casaco vestido na inevitabilidade do vento de norte
e os lábios gretados na espera tumular de um céu crescente.

a rapariga deu-te um cigarro e não te falou das cidades que viu nascer
dentro dos teus olhos quando o teu corpo era um par de asas abertas
na torrencialidade da sinalização rodoviária. depois, foi como se,
de repente, gasolina se prendesse entre as falanges e te tocasse o rosto.

é nas minhas costas que se fecha o teu sorriso de âmbar e se enrolam as palavras,
estão os teus braços atados aos olhos
dos fusos-horários da anestesia.
é dentro do medo que a noite repousa na mais pueril simbiose.



cláudia ferreira

quarta-feira, 4 de julho de 2007

old one



Chama-me mesmo que o passado não o permita,
vamos esvaziar todas as caixas e fingir que nos amámos um dia.
Vê como cresci!
Vê como são leves as minhas mãos vazias do teu corpo.
Aprendi a ser lúcida ás vezes,
a contar histórias aos filhos que nao tivémos,
a amanhecer em todos os rostos,
a prolongar a dor só para não estar sozinha.
Depois foi chegar ao inverno de todas as coisas,
pintar a casa e imaginar o teu funeral.

Meu amor:
As árvores cresceram tão depressa que da janela já não se vê o mar,
as crianças são agora homens, a saliva não tem qualquer sabor
e a pele que tão bem conheceste é uma ferida aberta, cansada e velha.
A cama continua desfeita e as tuas vagabundas palavras
nunca viveram para além da garganta. Alguém há-de contar-te o que
não sabes de mim, eu não sinto saudade de nada, não te conheci, não te amei
nem tão pouco fui capaz de dizer-te adeus. Faltou tanto e restou tão pouco
do que dizias pertencer-nos. Já não tenho medo dos pequenos papéis colados
aos móveis. Vê como cresci... Aprendi a viver a tua ausência tão intensamente
que já não me lembro do teu rosto...

Chama-me e conta-me mentiras como se não conhecesse já todos os teus olhares,
não sei se deva dizer-te que respiras como antigamente e por isso pouco mudou.
Ontem decidi vender todas as noites que passámos ao relento mas quem quereria
comprar o meu passado? Mas vê meu amor, vê como cresci!
Agora morro à velocidade do grito.


cláudia ferreira




aquilo que te faz sorrir e me envenena
quando são os teus dedos a pousar na minha nuca
a claridade envernizada do fim das estações.
os anos de ti que correria escada acima
numa tristeza a empalidecer sombria
na tentativa difusa do alcance brusco da negação.
sangro nos dedos a plenitude amorfa dos dias
a acidez ocasional de cada passo contrário.

-existe alguém deste lado da acendalha
a nutrir uma guerra de ossos.
é o que digo quando sinto a imobilidade
levar-me à boca o sabor da boca.

como se cada coisa fosse mais secreta
do que a idade das pedras mais perfeitas
a alastrar pelos cotovelos desta enormíssima tarde.
a lembrança da monotonia a habitar agilmente os fusos horários.

a eternidade é o presente a acabar,
esta é a porta mais fechada que poderás conceber.



cláudia ferreira

terça-feira, 3 de julho de 2007

antes do mundo


imagem de Miguel Rezende


e depois...

um café curto ao balcão
ou então nada.

não somos.
dor da parte de dentro,
nas paredes
ges
tos.
restos.

permanecemos
cinzentos.

e depois...
e se depois nos deixarmos cair
no abraço melancólico do entardecer
na cidade de todos os rostos.

ainda antes do amanhã
lançar o trunfo.
e depois
um café curto ao balcão ou nada.
fendas acesas nas mãos.

os dedos quase demasiados vazios
para prender o teu corpo.


cláudia ferreira

domingo, 1 de julho de 2007

1926


imagem de Filomena Chito


desejo-te a morte.
agora que o maço de tabaco
inumera cidades onde te vi crescer
e que vejo em ti
os olhos do último amor.

se me apanhares em flagrante
a plantar flores no chão da sala
depois de visitar todos os telhados
para de te ver na perspectiva distante
- da saudade -
deixa-me só amanhecer mais uma vez
cansada demais para poder prender-te
enquanto a chuva se detém nos ombros.

vês o rio no último andar daquele prédio?
é como um incêndio que envelhece ao tocar os lábios
e não se diz nada, é só o silêncio
- a tua nudez mais profunda -
a tua nudez em mim.


cláudia ferreira