quarta-feira, 31 de agosto de 2016

das chaves

não escrever mais. é o que me apetece, nunca mais. não escrever mais. chegar aos sítios e simplesmente chegar aos sítios. não pegar no telemóvel e não escrever mais. não dizer mais nada. ninguém saber, ninguém.

nunca saberás o que vi nas tuas mãos
e não foram só dedos, e não foi só pele
mas eu nunca te vou dizer
porque se tu soubesses o que eu vi
nas tuas mãos, quando desviaste o olhar
e aquele carro azul travou para
deixar atravessar o senhor da camisola
cinzenta. ai se tu soubesses o que eu
vi nas tuas mãos. ninguém pode saber.


aeon (cadernos 2003-2005)


se pudesses sentir o sabor a sangue
nesta nuvem de asma
a certeira bala da insanidade
a minar-te as pontas dos dedos
quando chegas definitivamente
       leve ao último dia.
uma solidão que te emagrece a boca

enquanto eu me enveneno
         e tu te embebedas
da ausência da carne
nos olhos da vítima.

wonderful life

ana era a puta mais requisitada da cidade. famosa fodedora de banqueiros e homens de negócios. alguns indigentes também, por caridade.
tinha o olhar fundo de que os homens gostam e garganta até perder de vista.
ana disse que não a todos os pedidos de casamento e eles chegavam de todas as formas, em restaurantes de luxo ou bijuteria barata roubada nos chineses. ela dançava com os seus pés grandes e as mãos abertas ao esquecimento. um dia escreveu na porta do apartamento:

ana, a puta mais requisitada da cidade.

não se depila nem se depena
é um anjo a quem falta uma asa
se queres provar um jogo limpo
mais te vale comeres em casa.

ana nunca perdeu o sapato à saída do baile.

filme de terça-feira


terça-feira, 30 de agosto de 2016

a.mão.que.toca.os.lábios.que.tocam.a.noite.que.se.cala.sem.dizer.o.nome.desta.revolta.de.bocas.que.se.fecham.sem.existirem.na.equação.dos.espaços.por.preencher.a.vida.por.preencher.por.preencher.por.preencher.


José Saramago - Memorial do Convento (e cenas)

"a vida podia ser apenas estar sentado na erva, segurar um malmequer e não lhe arrancar as pétalas, por serem já sabidas as respostas, ou por serem estas de tão pouca importância, que descobri-las não valeria a vida duma flor"



ou eu a caber em alguma hora do teu dia.
ele disse: se fechares os olhos talvez este momento não acabe. o sol continuará a rasgar-te a pele como uma lâmina afiada na língua.


time to rest

em boa verdade aquilo nem foi bem uma história de amor. foi antes uma sucessão de atropelos. como quem corre para apanhar o autocarro para chegar a determinado lugar porque tem mesmo, mesmo que ser. olhando bem para as coisas, como efetivamente aconteceram, não se terão sequer olhado uma única vez. viam-se, naturalmente, mas aquele olhar profundo de quem quer provar a alma nunca aconteceu. o mais próximo que estiveram do amor foi uma certa altura, em que ela partiu a mão e era ele que lhe espremia as laranjas para o sumo matinal. de resto, podiam perfeitamente ser colegas de quarto de uma qualquer colónia de férias. aquele sorriso de quem se encontra a si próprio, por acaso, nas estradas da vida, nunca se viu nem na cara de um nem da do outro. embora sorrissem, logicamente, nas cenas mais engraçadas das séries de televisão. que viam, cada um do seu lado do sofá, como estava mentalmente definido sem qualquer contestação. em boa verdade, aquilo nem foi bem uma história. mas antes um acidente. ambos acidentalmente infelizes, anfitriões de uma casa que nunca foi sua. a dançar valsas e a colecionar fotografias de momentos que nunca aconteceram realmente. a trocar beijos como quem troca dinheiro na mercearia. contudo, a não saber desejar mais nada. a viver como se tivessem comprado sapatos de um número abaixo do seu, com esperança de acordar um dia e ser esse o número certo. na expectativa de viver sem encolher os dedos dos pés. o que, em boa verdade, nunca aconteceu.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

masks on

aí, sentado à mesa todos diriam que és uma pessoa normal. cheio de talheres, de copos, de pratos deliciosamente empilhados. o cabelo, ralo a começar a mostrar os sinais da idade. a boca perfeita, os lábios desenhados como frutos maduros. as mãos sobre a toalha branca. quem te ouve falar de vinhos julga-te um entendido, temperaturas, regiões, mais ou menos frutado e reserva especial. ouço-te falar de vinhos como te ouço falar de amor, tudo exactamente como está escrito nos livros de cièncias da natureza. eu que nunca sei qual é o meu copo ou o meu garfo, se ponha o guardanapo no colo ou delicadamente pousado ao lado do prato. eu que pouso os cotovelos na mesa e digo foda-se debaixo dos olhares atentos da censura. tu, monocórdico como as musas a agradecer as amabilidades, a falar de vinho como quem fala de amor. como quem não percebe nada nem de uma coisa nem da outra. eu, impaciente, à procura de um sítio onde se possa fumar. traga-me a conta por favor.

monday

irrita-me essa merda de seres uma pessoa cheia de qualidades. toda a gente repara que és uma pessoa diferente das outras. diferente para melhor, não é o diferente de coitadinho está sempre atrasado para alguma coisa. não é isso. é bonito. toda a gente repara como és bonito e como fazes montes de coisas.
como fazes bem montes de coisas. irrita-me tanto essa merda. que te olhem e te gastem porque toda a gente vê. toda a gente vê que nunca vai conhecer ninguém igual a ti. e eu sei que nunca vou conhecer ninguém igual a ti embora continue a procurar. só para provar a essa gente toda que não és assim tão especial, que não fazes assim as coisas tão bem. que, se calhar, até tens os teus falhanços. que não sabes, por exemplo, escrever bem com a mão esquerda ou que tropeças muitas vezes. que és ridículo quando estás com sono. provar a essa gente toda que ficam fascinados por coisinhas de nada, e que são uns fracos e parvos por conseguirem ver como és bonito, como és especial. irrita-me tanto essa merda de seres tão ponderado, e tão paciente e de ficares calado. e seres tão bonito. e saber que nunca vou conhecer ninguém igual a ti. irrita-me tanto.

sábado, 27 de agosto de 2016

um olhar
mais fundo
que os punhais
que diga
fica
é aqui a tua
casa.


herberto helder - PHOTOMATON & VOX


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

aula nº1

podias ensinar-me todos os truques
da distância e da ausência, como
se tornam invisíveis os espasmos
o corpo a descolar das feridas
como se, debaixo da pele, se falasse
outra língua.

explica-me como é amanhecer
e percorrer com os dedos o
peito frio, a janela aberta e a
cortina incrivelmente azul
a voar do lado de fora do prédio.

eu, que nasci no centro da tempestade
e não sei sequer dizer o teu nome
sem que as minha pupilas dilatem
e os músculos contraiam 
eu, que respiro o ar da treva
no caminho do paraíso.

diz-me como é.
ensina-me a incrível arte da indiferença.


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

come on baby

devias conhecer-me melhor
e saber que, a esta hora já os teus dedos
deveriam estar pousados sobre os meus
joelhos. para eu contar os teus dedos
um a um. e depois os braços e depois
todos os teus orgãos. eu quero saber se
sobreviveste inteiro a mais um dia. eu
quero ter a certeza que a chuva, que
a rotina, que a tristeza não roubou
qualquer pedaço de ti. e estás intacto.
perfeito como eu sonhei. eu quero ter
a certeza da tua imortalidade. já devias
ter pousado em mim todo o teu corpo.
já me devias conhecer melhor e saber
que nada te vai arrancar de mim. cinco
dedos em cada mão. cinco sentidos.
na tua boca escrever todas as palavras
proibidas.


Alberto Pimenta - Tijoleira


voice mail

ligava-te, dizias que estás bem, ou mal, assim assim, aos apalpões no escuro, no cimo da colina a caçar borboletas ou na lama a tentar sobreviver. qualquer coisa que te fizesse real, que me provasse que eu não te inventei. que não fui eu que criei o teu rosto com os teus olhos brilhantes e a tua boca ansiosa. que não fui eu que desenhei os teus ombros e o teu peito e que lá pus um coração a bater apressado.
ligava-te e dizias-me que estás a chegar e que talvez eu possa caber nos teus braços. e eu ficava a pensar que talvez coubesse de facto. e depois tu nunca chegavas mas eu havia de ficar sempre à espera. e pensaria, está só atrasado, deve ser o trânsito das estrelas, deve ser poeira cósmica. e eu ficava contente por te saber a caminho mesmo que nunca chegasses. só de dizer que vinhas era como se viesses mesmo.
ligava-te e perguntava-te porque estavas atrasado. e tu inventavas uma coisa bonita para justificar as horas. dizias que era para eu te abraçar com mais força quando te visse. e eu dizia que podia ser agora, porque já tinha o peito a rebentar. e que talvez não tivesse vida suficiente para esperar muito mais. e tu juravas que vinhas, e que estavas mesmo mesmo a chegar. e eu ficava contente outra vez. e eu ia ter a certeza que não és mais um dos meus fantasmas.


dos cíclicos regressos

vem sentar-te ao meu lado
agora que o tempo é esta maçã mordida
e desafiei todas as leis da física para
te olhar.

diz-me que o teu vazio é igual ao meu
mas que, boca a boca
poderemos ainda habitar alguns segredos
tão frágeis como ilhas de pó.

rasguei todos os lençóis, com as unhas
e atravessei noites e noites de medo
como um animal prestes a sucumbir
entre os dentes do predador.

devolvo-me à crueldade do inevitável
partida que estou ao meio, de me dobrar
em todas as direcções que te são opostas.
regresso ao medo que os teus olhos se fechem
e as tuas costas se ergam no encontro das mãos.





quarta-feira, 24 de agosto de 2016

p1

diz-me como é que eu vou guardar esse teu sorriso enorme, que eu nunca vi pousar nas minhas mãos.
eu, sem espaço. eu, pedaços. eu, quinquilharia que sai nas rifas da quermesse.
eu, sem espaço sequer para a minha loucura, a revirar os olhos à procura de um lugar para guardar o teu sorriso. igual ao daquela fotografia em que parece que te construiram a partir da boca. em que todo o teu corpo parece ter resvalado dos lábios.
o teu sorriso, o mesmo que eu pedia baixinho ao génio da lâmpada quando ele apareceu cá em casa para saber se eu tinha sobrevivido ao acidente.
onde é que o vou pôr? não cabe entre as folhas dos livros, nem no camiseiro junto aos lenços, não cabe debaixo do tapete na sala. tentei engoli-lo, mas não me passou da garganta. eu já chamei todos os especialistas, até o cardiologista diz não haver solução. ou me livro do teu sorriso ou tenho que arranjar um coração maior.


telegrama

ensina-me a não querer
os teus dedos perdidos no meu cabelo.
ou ensina-me a fechar todas as
portas, com a tua mão sobre a minha
pela última vez.


pensamentos em salas de espera

três horas sentada na cadeira vermelha
à espera do diagnóstico, da solução, de qualquer coisa.
alguns sorrisos de pena.
olho lá para fora, engraçado estar no sítio onde nos vimos
pela primeira vez.
à espera de uma coisa que não vem, três horas a ler
avisos, panfletos, a inventar a vida dos outros.

sinto-me uma criança a fazer coisas de adultos.
e não me apetece ser o que quer que seja.
amanhã, pego na bicicleta e vou brincar com
os meninos da minha rua.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

ora foda-se


brisa

se pudesses ser o sopro
e não o ferro
igual ao primeiro dia.



amnésia




eu não me lembro do dia em que te conheci
nem tu. talvez as paredes fossem ainda brancas
e todos os desejos estivessem por pedir.
ou eram só vazios a rodopiar nas mãos
entre um cigarro e outro, um beijo.
um sorriso que se imagina que vá durar
toda a vida. eu não me lembro. nunca falamos
a nesma língua. talvez estivesse a chover e tivesses apertado o casaco para te proteger o pescoço. eu não me lembro mas é como se doessem, as não lembranças a atravessar o corpo, rente à pele. deves ter pegado nos óculos para os limpar, ter apanhado o metro. talvez tenhas chegado atrasado a algum lugar nesse dia. tu não te lembras. a minha vida mudou num dia que eu não me lembro. devo ter posto o isqueiro dentro do maço de tabaco já a meio e ter-me esgueirado entre a chuva para apanhar o comboio. eu devo ter tomado vários cafés nesse dia sem saber que jamais seria a mesma. inocente pela última vez. sem saber se me atirarias flores ou pedras, a tentar decorar o teu nome. provavelmente a escrevê-lo na primeira linha de uma folha limpa do caderno. a escrever o teu nome e a seguir um ponto de interrogação. e depois as horas a passarem. a certeza que já me tinhas esquecido, que o esquecimento seria também a minha salvação. a olhar pela montra do café, um rapaz que deixou cair os livros, a solidão como uma ferida banal dentro de tudo o que nos habita. eu não me lembro se te fiz alguma pergunta. eu já sabia tudo sobre ti menos o teu nome, que escrevi no caderno e repeti enquanto descia a rua. eu queria dar-te todos os meus livros, as minhas inquietações, a roupa que trazia no corpo. não devo ter dito nada, não me lembro das palavras. o arrepio de quem pressente que nada será igual dali para a frente e o confunde com o frio, devia ser inverno. tu não te lembras. mas no meu peito abriu-se um buraco do tamanho do mundo, talvez por coincidência ou como aviso. eu não me lembro.


segunda-feira, 22 de agosto de 2016


as palavas não servem para nada.
o comboio, as flores, os dias longos
como alucinações. as palavras não valem nada.
as portas, os rios, não rio. a luz que bate no ecrã.
os braços curtos para o equilíbrio. o café, os cheiros.
as palavras cortam a pele como o silêncio.

as palavras são iguais ao silêncio. 
não servem para nada.


os pássaros dançam em desespero sobre as ondas.
não fosse o ruido confuso da rebentação, seria possível
ouvir as suas asas contra o vento.

quando foi a última vez que viste uma estrela cadente?
ou, simplesmente, a estante arrumada e os livros todos
à mesma distância entre si.
a última vez que não te doeu qualquer parte do corpo
e fumaste um cigarro sem culpa, e estendeste os pés
por cima da mesa e foste pescador, astronauta,
mágico ou vendedor de chapéus em paris?

a última vez que te despiste ao espelho
e percebeste que nada te regressará
e te deitaste no chão do quarto, nu
à espera que se soltasse o grito ou a gargalhada.
e nada se moveu, dentro ou fora de ti.

todas as ruas terão o teu nome
todas as canções saberão de ti

e essa é uma consequência de estares morto.



ou vice-versa. 


sábado, 20 de agosto de 2016

desço a rua, subo a rua
eu cumpro
todas as exigências
eu com

pleto
todas as rotinas

eu chego ao fim da rua
como quem chega ao fim do mundo
e nunca foi tão difícil abrir o sorriso

ainda assim, os lábios cortam a pele
para ser o que é suposto.

estou tão cansada que me vivas em esforço
que se for preciso eu própria pego na faca
e rasgo o meu peito para te arrancar de mim.


quinta-feira, 18 de agosto de 2016

malade

não consigo acordar. o tempo deixou escorrer para dentro do corpo o pó luminoso da angústia.
o peito arde como os lábios, há uma fissura quente entre a parede e a janela.

lá fora, as putas e os assassinos contam segredos ao ouvido da eternidade, nunca saberemos a sua língua. a mãe bem lhes disse que não seriam felizes se não falassem francês ou se não soubessem medir os passos das aranhas.

lá fora, os cães cegos de cio, os candeeiros enferrujados cintilam como estrelas de aço. dirás: nesta cidade habitam todos os teus fantasmas. eu vou responder que je ne sais pas parler français quanto mais aproximar a língua do éter.

passei o dia a segurar os olhos entre o polegar e o indicador mas não consigo acordar.

não sei a língua da paixão, quanto mais falar francês. não conheço o olhar das putas nem dos cães. e com assassinos só me cruzei uma vez por mero acaso na fila do supermercado.


fotograma VI

não voltes, agora que o sol nasce atrás das nuvens
e alguém cortou todas as hortênsias azuis
que atrapalhavam a passagem junto ao muro

não voltes

quererias tudo igual
o chão com alguns paralelos levantados
para tropeçarmos de amor
nas bebedeiras infindáveis dos corpos

os teus braços abraçar-me-iam
pela cintura, eu diria que morremos
para lá de todas as passagens e conceitos
tu dirias que estamos mais vivos que nunca

não voltes.

os meus olhos tombariam
de ternura.



caixa

diz-me o que nos cabe
hoje
no espaço entre os dedos
e os lábios
se é o incêndio ou o voo

se entre a pele
e o corte
existe ainda
uma palavra
por dizer

entre o teu corpo
e o meu corpo
a falta de ar
ou o universo
inteiro?



terça-feira, 16 de agosto de 2016

angelina (cadernos 2003-2005)

doem-me as mãos de pensar
a palavra acesa na tua boca,
a chaga na memória extinta
dos cadernos de capa preta

|meta|morfose|

doem-me os dedos
de pensar a morte
engolir-te os ombros brancos
cortar-te a pele-veneno

angelina do amor maior
num piano com asas de borboleta
um osso a arder-te no peito.

implode uma flor na tua boca
e
doem-me os braços de pensar a noite
diluir-se na lingua mais funda.

que a criança é uma mentira
o céu é uma mentira
envergonhada.

eu não perdi a cabeça
só não sei dormir enquanto
a chuva me rompe a pele
no absurdo de pensar-te.

angelina do amor maior.
e uma luz do ponto de vista da morte.
ainda te falta dizer que não brotará qualquer conforto desta guerra
breves serão os passos em redor do cinismo que te atrasa.

o teu corpo jamais te dará a trégua que tanto desejas
quando encostas a testa ao vidro da janela que parece tão larga
quanto a dor que nos tarda entre os dedos.

ainda te falta atravessar o medo e as flores secas da negação
curtos serão os braços para tocar o sol que alimentas com palavras
tão desnecessárias quanto a morte ou a sombra das árvores
em avenidas inteiras sem nome.

ainda me falta dizer-te que, enquanto olhavas atento as paredes
brancas, a vida me cortava ao meio sem hesitação
nas tuas mãos tudo o que sou se desfazia em pó.


eoteusilêncioétãotristecomoqualquerumdosmeusdias


e quando não existir uma ferida... a gente inventa.


segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Florbela Espanca - Poesia Completa


two minutes too late

agora que ninguém
me espera junto ao portão
e ouço as primeiras folhas secas
estalar debaixo das sandálias
sei que nunca virias realmente.

foi antes a ilusão e a sombra
entre os lábios gretados do cansaço
de uma vida que quiseste ao contrário.

sei que sorriria ao mostrar-te
as linhas da minha infância,
este banco onde aprendi palavras
tão compridas. esta rua por onde
corria em frente ao posto da guarda
como se temesse já a punição pelos
crimes que cometeria apenas anos depois.

as mãos sujas das amoras desfeitas
dentro da taça de plástico verde
havia de fazer-te sentir tudo isto
como se o tivesses vivido comigo.

a bicicleta encostada às oliveiras
e os pés descalços como se fossemos
eternos ilusionistas.

séculos antes das feridas
quando o sol nascia nos dias de feira
e entre o sono e a felicidade
caminhávamos sem medo.



adam e os perigosos silêncios (cadernos anteriores a 2003)

o mar é uma esferográfica inexplicável
e sobre a sua ausência pernoitas
os teus olhos são indecifráveis esponjas de luz
na rotação dos lírios em torno da noite

corpo - maçã vermelha que repousa nos impulsos da carne
dei-te um cigarro de mentol mas não pudeste entender
o alcance das unhas, encardidas, na pulsação das janelas

talvez lembres ainda uma pequena fonte, com peixes cor-de-laranja
quando na tua boca nasciam flores mortas,
ainda que negues o chilrear dos pássaros
hei-de ser sempre nevoeiro a dormir na tua sombra.


sábado, 13 de agosto de 2016

por um fio

estamos todos
sempre


sexta-feira, 12 de agosto de 2016

das linhas férreas

agora que dormes
e o quarto é apenas uma linha ténue de luz
que te cobre o peito, descubro no teu sono
todas as respostas

eu morrerei e tu morrerás (inevitavelmente, é certo. tão animais como outros quaisquer).
qual de nós morrerá primeiro, eu não consigo prever.
quando morrermos provavelmente já não nos falaremos há tantos anos quantos nos conhecemos hoje.
não saberás que morri nem saberei que morreste.
não teremos como chorar a morte um do outro.
não haverá qualquer esperança de fazer o luto do teu sorriso.
não poderei dizer que morreu o olhar mais sereno que conheci, nem que nunca mais tocarei a seda dos teus lábios, ou que o mel da tua voz jamais me dirá bom dia ou adeus ou qualquer outra palavra.
não sentirei o golpe de te saber enterrado num cemitério qualquer na tua cidade situada no fim do mundo.
sentir-me-ei em carne viva sempre que te pensar mas nunca será por pensar que morreste.
no dia em que morreres eu vou cumprir todas as rotinas, todas as indicações médicas se já me tiverem diagnosticado os piores males. vou fumar às escondidas, é certo, e ter uns óculos para ler os livros de sempre.
tu terás sempre a mesma idade, quando for a tua imagem no meu amanhecer.
eu nunca saberei que já não acenas aos velhos na rua nem te fascinas com as coisas simples na biblioteca, no estádio de futebol, no olhar das crianças.

esta é a mais cruel alegria.
saber que nunca me morrerás.


Leonard Cohen - Filhos da Neve


quinta-feira, 11 de agosto de 2016

ver o mundo através dos teus olhos

de nada serve
o que a nada serve


da vista sobre a fundação

nenhuma voz me vem dizer onde estás
neste preciso segundo em que as árvores
parecem hélices largadas no vento

talvez devesse só fechar os olhos
resistir à substância da saudade
ficar em silêncio com os fantasmas

inventei uma forma de olhar-te de longe
sem que me pressintas a habitar as tuas horas.

parece tão longo o tempo dos sorrisos
agora que esta história se tornou um enorme acaso
parecido com os que vês na televisão
entre os anúncios aos comprimidos
e aos seguros de vida e morte.

talvez devesse só agarrar-me com força
ao inverno que aí vem
agora que nenhuma voz me diz
onde estás, neste preciso momento
em que duas mulheres atravessam
a rua num passo rápido.

e ninguém sabe o que me falta.






consulta I

ele senta-se numa cadeira encostada junto à porta do consultório.
quase feliz por estar no psiquiatra. quase feliz por ter assumido a loucura. ter conduzido até ali devagar como se fosse a última vez sendo contudo a primeira. sorri quando lhe dizem que faz muito bem em procurar ajuda, fazes muito bem em procurar ajuda!
então senta-se ali, na cadeira azul e preta, desconfortável, nitidamente não concebida para loucos e nenhum pensamento o atravessa. chegou meia hora adiantado, como normal, todos os loucos gostam de se enlouquecer mais um bocadinho, seja a vaguear na cidade sem destino, seja na procura do encontro dos lábios, ou numa espera desnecessária.
sempre a esticar um bocadinho mais a loucura. talvez devesse ter trazido um livro, não é igual ler no telemóvel, pensa, não é igual. fica a faltar o jogo de sedução que se faz com as páginas, o peso do que já se leu na mão esquerda, não é igual.
estas paredes estão mal pintadas, pensa, que raio de psiquiatra tem umas paredes assim onde os loucos esperam. a menina atrás da secretária sorri sem motivo para todos os que entram, coitada. se não é louca deve estar lá perto. pede-lhe que preencha um formulário, empresta-lhe uma caneta, sempre sorridente. aguarde um bocadinho que o doutor deve estar a chegar.
pensa em que dia terá ficado louco, não tomou nota na agenda. não percebe efectivamente como isso aconteceu. mas a loucura é uma coisa que faz doer o corpo todo. a loucura é uma espécie de pneumonia da alma. vai dobrando os sentidos até que reste uma pedra a atravessar a garganta. é difícil ser louco e respirar ao mesmo tempo.
talvez se tivesse continuado a jogar à bola como o Marco e o André, nào tivesse chegado ali. andaria hoje de meias até aos joelhos e a bola vermelha debaixo do braço, tal como na infância. talvez as coisas tivessem sido mais fáceis se tivesse continuado a jogar à bola. ou se fosse advogado como o Tiago, sempre com pressa, sempre com papéis à volta. a acusar pessoas, a defender pessoas, a queixar-se do sistema judicial e a confessar que todas as estagiárias são uma putas. só querem foder por um contrato de trabalho no escritório mas ele lixa-as sempre, e orgulha-se disso. o Tiago não é louco, pensa, talvez por falta de tempo.
o doutor deve estar mesmo a chegar, diz a menina a sorrir atrás da secretária.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

fotograma V

ter-te
como se tem um livro pousado sobre as coxas
numa noite sem vento a meio da semana.

ler-te
como se as palavras nos fizessem percorrer
lentamente a essência de estar vivo.

ser tão só como em qualquer outro dia
do ano. como quem ama a personagem
de um livro que pousa sobre as coxas
numa noite sem vento a meio da semana.


eu existo, sem ti.
mas, sem ti,
a eternidade
é um lugar por
inventar.


terça-feira, 9 de agosto de 2016

os monólogos (cadernos anteriores a 2003)

monólogo I: do fundo aberto

e se ficamos cegos por ouvir guns 'n roses
numa tarde de domingo em que nos apetece morrer mais uma vez,
encostados a uma parede branca da qual não conhecemos um fim,
se ficarmos cegos (mesmo!) sem vontade de escrever declarações de amor
em post-it's exageradamente amarelos ou de gritar
os nomes de todos os corações ensaguentados que fomos perdendo pelas ruas,
não importa.

se me dizias que os meus olhos eram a fenda imensa do teu sangue e eu acreditava,
não vai doer nada saber.

que este amor nasceu do vómito.

o nascimento dessa vénus ilegítma já não arranca carne dos braços [da noite]
quando o vazio preenche o esquecimento e a loucura.

E tudo começou in the midle of fucking nowhere,
oh meu amor era um garden de uma palácio de vidros partidos onde tu gritavas:

-vamos morrer meu fucking love,
fumar um cigarro a meias antes de morrer meu fucking love.
depois cortávamos os pulsos um do outro
e fumávamos o vácuo intenso da floresta despida até aos ossos.

quando me arrancavas a lama da boca com os dentes
e me deixavas ser o primeiro inverno do teu corpo.

-nunca mais te empresto a alma nem te digo qual é o lado mais sujo da minha voz,
não te deixo mais cuspir-me na pele, não!
nunca mais, nem te permito contares segredos aos meus dedos.

era diferente amanhecer numa pensão barata de paris,
com as vozes das putas nas escadas de madeira podre em frente ao quarto
 tu dizias que as putas são assim.
era diferente ver a chuva através dos buracos na parede que davam para o passeio das
traseiras e fumar coca com a chávena de café na mão.

e ver a luz nascer-te nos ombros
(sim! eu via a luz nascer-te nos ombros, e nos olhos às vezes)

e depois?
depois?
recortar maços de tabaco até às 3 da tarde
e comprar smarties numa loja ranhosa do fim da rua.

it's a nice day to start again.

era diferente quando ouvíamos Prince no restaurante chinês
e líamos Al Berto nas confeitarias,
quando os táxis demoravam demasiado a chegar ao outro lado da cidade,
perto do mar onde me falavas da noite e da saliva.
era diferente quando mulheres de 40 anos se atiravam da ponte
e eu ficava sempre a ver-te partir.

um dia disseste que o amor são caixas vazias
-my fucking love... empty boxes. e nada.

nada.
nada.
nada.


sabes quantos rios moram agora nas ruas?
quantas cartas me morreram nos lábios?
todas.
que cada palavra transporta uma ausência suja.

.como os néones e os gritos.


- my love eu não posso ser nada para além de mim.
por muito que me rasgues as veias do coração.


monólogo II: dos navios dispersos

vês? é como se de repente ao descer uma qualquer rua do teu corpo
o medo me atropelasse e me despisse de todos os significados

nada é mais simples do que gostar de ti
é o teu cabelo que me pesa nos ombros
quando descemos devagar os 31 dias de janeiro,

pergunto-te se me queres ver atear este fogo no mais que te posso dar das minhas fraquezas,
não consigo derrotar este cigarro que me amarrota os dedos
e, às vezes, uma mulher sem asas pernoita no mais nojento de mim

não nos habitaremos nunca mais na pérfida insinuação dos corpos
as paredes brancas dos pulmões representam agora o que restou desta paixão.

a saliva tem o teu nome e nada se move em redor da boca
da casa restam os sacrifícios diários de apagar-te.
o café, os lírios, mentol nos dedos, um comboio na habituação das horas
não vês? as ruas a incendiar da tua memória, a tua nudez derrotada nos abismos.
eu vejo a luz esbatida de quem vai morrer fora do seu cadáver
os fragmentos da guerra matinal de emergir na fatidíca sensação de existir
além das palavras.

já não são árvores na coexistência dos sentidos, gritas mãe gritas raiva
e só as doenças te ascendem ao rosto.


monólogo III: das doenças nocturnas

"as pessoas não acordam os sonhos",
repetia enquanto o fim da rua me parecia cada vez mais longe.
Rua 5 de Outubro:
caminho devagar e o cigarro caiu-me antes da última passa,
disse foda-se e acendi outro,
é como se me doesse ainda a música de ontem
o dia parado entre os átomos
aproximámo-nos da janela pequena e acendi um l&m,
deste-me um beijo e eu sorri,
não gostas que a minha boca tenha o sabor do tabaco.
não disse nada mas lá fora chovia
não sei se notaste mas havia um baloiço
e as feridas já tinham cicatrizado nos meus braços.
há muito que estavam os carros parados
e as pessoas no café a conversar sobre futebol
eu pensava-te e repetia o teu nome como se estivesses longe,
estavas ali e as pessoas dançavam, o copo esteve toda a noite
no parapeito com cerveja até meio.
já te tinha perdido o rasto muito antes de te encontrar,
senti-o mas não disse
não disse nada e ela puxou-me para dançar
e ria-se como uma louca
eu olhava para ti e tu fumavas
passavas as mãos no cabelo às vezes
e eu sentia tudo a tremer dentro de mim.
era mais fácil esquecer-te agora se as fotografias
não me dissessem o teu rosto.
na rua 5 outubro há casas abandonadas e casotas sem cães.
tu disseste que ela era bonita e te amava
e eu não.
eu não disse nada.
eu mandei-te foder baixinho.
tu não ouviste.
os teus olhos traziam todo o sono e humidade do mundo,
lembro-me de ver o nascer do sol e tu à minha frente.
lembro-me de fugir dias depois.
lembro-me de nunca mais te ver.


monólogo IV: da fertilidade do vazio

dói-me a cabeça,
sei que tinha o teu nome escrito numa página deste livro
mas não me lembro.
esqueci o teu nome mas tinha previsto este dia.
acenderia todos os cigarros para despertar a memória
e nada me viria à cabeça, só o negro do asfalto
as linhas amarelas sem continuidade,
eu a perder-me mais e mais no sentimento da água.
no meu sonho tu abrias a porta e não sorrias
(nos meus sonhos tu nunca sorrias)
às vezes era eu que te abria a porta,
era eu que abandonava a casa
depois de abrir todas as janelas
era eu que fugia e nunca mais sabias de mim.


nunca me preocupei muito com o que pudesses sentir
sinceramente, pouco me importam as tuas angústias.
e quase consigo acreditar nisto quando repito muitas vezes.


hoje o trabalho correu bem, não doem as pálpebras, não tenho sono
as pessoas foram simpáticas comigo e agradeceram a competência
das palavras bonitas.
continuei sozinha depois das pessoas e das palavras,
não fui atropelada em nenhuma rua sem semáforos
mas tenho a cara desfeita e chamo uma ambulância
mas ninguém vem.

7 (cadernos de 2003-2005)

sabes

       debaixo do meu sono nasceu um mapa de uma cidade
       quase enorme
       tomávamos chá              branco          da índia?

sabes
       vi as aves arder no teu desconforto
       fotografaste a consumação dos dedos
       o suave ardor das espigas no espaço etéreo dos corpos

sei
       o meu silêncio mais antigo ao imaginar as tuas mãos acesas
       (no meu ombro) a terra inteira despida da confusão inicial.

da longa percepção dos rastilhos

és a brisa que me desalinha as pestanas
hoje, que me sinto capaz de cometer
todas as atrocidades para pousar
nos teus ombros os milagres
que me ascendem aos lábios

ainda que se erga a treva na ampla
dissonância das ruas, hoje
as tuas pupilas habitam a minha pele
como cães raivosos presos
atrás de portões de fogo e dor

vais encontrar forma de me ficar justo
ao corpo, amputar um a um todos
os meus membros e entre bocas rasgadas
pela crueldade do amor, far-me-ás
sucumbir na teia brilhante do sexo.



rescaldo

tinhas razão.

acordamos no meio do incêndio
a garganta arranhada e o sabor a sangue
na boca.
as janelas pejadas de pequenos pedaços
de cinza branca por dissolver

todas as serras arderam em redor da cidade
não teremos mais sombra nem cheiro
a eucalipto.
nenhum motivo para contemplar
a alegria e voo aflitivo dos pássaros

tinhas razão quando dizias
que nada nos restará
e eu acreditei, no momento
em que fechaste a porta
que isso era só mais uma frase
para me magoar

mas tinhas razão.
nada nos restará, nem este dia
que depressa escorregará
pelos olhos do infinito.

devia ter olhado fundo nos teus olhos
ter percebido que era verdade
quem sabe abraçar-te.
colocar-me no ínfimo espaço
entre o teu peito e a faca
e não deixar sair da tua boca
as palavras mais cruéis desse dia.

veremos tudo morrer antes de nós
teremos tudo a arder nas nossas mãos.

e nada te restará meu amor
só a razão.


sms

o que mais ama em ti?

a forma como a fazes acreditar
que podem existir
para lá de todas as dúvidas
de todos os medos
dentro da serenidade de um
arrepio que é vosso

o teu sorriso infantil
no meio da tempestade
a doçura com que destróis
tudo o que acreditava ser.


segunda-feira, 8 de agosto de 2016

artefactos de verão

raramente chega aqui o som dos sinos
mas hoje, por entre as nuvens cinzentas
pareceu-me ouvir-te chegar na melodia
cortante do vento

como se a tua mão, pousada na minha
pudesse dar trégua à agitação dos pulmões
a tua presença em torno do laranja vivo
de um sol que me morde as artérias

como se a tua boca, me falasse
dos universos que eu não sei
e a tua voz me arrancasse todas
as barreiras da inquietação

o teu sorriso, é uma ânsia
que morre longe.
mas raramente me chega o som
dos sinos e quem sabe, podias ser tu.


quando quem não me conhece me conhece tão bem


interseção

diz-me uma cor, diz-me um fruto
dá-me algo palpável que possa ser abraçado
na tepidez de um desejo impossível

o vento entorna o café sobre o muro
que escorre depois para o chão
doenças que alteram a rotina dos dias

dá-me uma palavra que me faça esquecer
o sal das noites sem dormir, as olheiras
de manhãs vividas no inferno.

treinei ao espelho mil coisas bonitas
para te dizer. no entanto quando chegares
todo o sangue vai confluir em direcção à garganta.

e eu vou ser só, silêncio.






dos dias vazios

confirmada a premonição
resta-me enrolar o corpo
sobre as feridas

contar as horas que demorarás
a passar de dor a memória.


domingo, 7 de agosto de 2016

nada

não procuro aconchego
quem me beije a testa depois de adormecer
o acto misericordioso de gostar
só porque um vez há muito tempo 
se disse que sim

não quero palavras fáceis, de retorno previsível
como preparar a roupa para o dia seguinte
com a certeza de que tudo vai acontecer
como tem que acontecer

a comiseração de quem pressente as lágrimas
a formar-se no fundo dos olhos
e faz uma travagem brusca diante de um sinal verde.

não quero todos os teus sorrisos
só porque os imaginei, um por um 
em todos os pedaços do meu corpo.

não me apetece sobreviver aos dias.
não quero gostar do que tu gostas
nem de mim.


das múltiplas respostas

diz-me a que horas te chego.
fico alinhada nos restantes pensamentos
ao lado da lista de compras,
do álbum que tens de ouvir,
do suor de um verão infernal
a escorrer pela nuca.

como te chego?
é a suavidade das algas no encontro da pele
ou a ferocidade de uma lâmina
que abre uma carta esquecida
na caixa das coisas por ver.

diz-me, fico sentada a olhar-te
ou sou um peso sobre o teu pescoço
que te faz olhar para baixo
que te faz virar para dentro
e deixa à vista o avesso da carne.

chegar-te-ei algum dia?
a cantar uma música que gostas
mas que não conseguirás reconhecer
tal a desafinação nas notas agudas.
a pronunciar palavras que ainda
não aprendi e de que provavelmente
nunca conhecerei o significado.

quererás tu, a certeza de que existo?


premonição

há dias em que morreria por um passo atrás
um movimento contrário dos astros
dias em que a música é um acumulado
de notas e palavras sem qualquer revelação

dias em que são as cinzas a encher os passeios
em que a ternura se perde de todos os olhares
sem gritos nem exaltações.

horas sem vontade, um rio que vês correr
da janela mais alta da casa, uma planta
que vai secando no canto da varanda
sem qualquer salvação.

uma certeza cortante, saber que sairás
exatamente pela mesma porta por onde
entrou a luz.
que a sensação de estremecimento será
precisamente a mesma.


sábado, 6 de agosto de 2016

dos iguais

bonito era amanhecer sem idade
deixar rolar as cerejas sobre a mesa
mordê-las sem sacrifício e sem culpa

inventar uma forma de ser distante
sem estar ausente, ornamentar as feridas
torná-las bibelots na estante dos dias vazios

dividir o tempo em pequenos sacos
guardá-los junto à salsa no congelador
quem sabe, deixar de sentir a força da
rebentação dos tornozelos à boca

ser a ténue dor que não sufoca
um relógio de horas iguais.


sexta-feira, 5 de agosto de 2016

drama queen

catástrofe é não sentir.


estradas secundárias

houve um dia em que
quase nos conhecemos
não fosse aquela fila
interminável de carros
e fumo que me fez virar
duas ruas antes

quase nos cruzámos
não fosse a ânsia de chegar
a lugar nenhum
a minha pressa de fugir
aos semáforos.

o querer fugir e dizer
"vou por dentro"
fazer chiar os pneus
numa curva apertada

a alegria de conhecer
os becos, as ruas estreitas
sem gente e sem beleza

não fosse issso
e os teus olhos podiam
ter pousado nos meus

mas eu vou por dentro
sempre por dentro de mim.



quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Al Berto - Projectos 69


(às vezes tenho a sensação de que não me levas a sério)


(amar-te até deixares de saber
qual é o teu lado da cama)

notícias de amanhã

vou deixar para amanhã tudo o que posso fazer hoje. e amanhã, se a dor me deixar, eu vou deixar para o dia seguinte. e continuarei sempre a acumular tudo para dias que chegarão depois.
daqui a 15 anos, eu vou ter 15 anos inteiros de coisas para fazer. no dia seguinte.
eu vou passar a vida toda com os pés cruzados sobre esta mesa baixa e gasta, a inventar coisas para fazer amanhã, só amanhã.
é no futuro que está o tempo certo de fazer o que quer que seja.

e quando chegar o último dia, se eu souber que é aquele o último dia. vou descruzar os pés, os ossos vão estalar. será a alegria e a raiva a consumir-me os ossos.
eu vou erguer o corpo, e vou esticar os braços. a pele enrugada debaixo do vestido. eu vou abrir as mãos, e vou esticar os dedos.
eu vou fechar os olhos, vou dizer o teu nome.
primeiro um sussurro, como quem não sabe exactamente como pronunciar as palavras. depois um pouco mais alto. por fim um grito que fará tremer todas as casas da tua cidade.

e morrer.



diafragma

se conseguirmos esperar que o último comboio
atravesse, sem medo, as calhas gélidas de metal
se aguentarmos o ruído cortante do último comboio
a rasgar a quietude das estações

teremos ainda uma hipótese de sobreviver

um dia, foi o meu cabelo a esvoaçar
do lado de fora da janela do último comboio
e tu, num riso infantil, dizias que só ama quem
é livre

tu disseste que se conseguíssemos esperar
até ao último comboio, tínhamos uma hipótese
de contrair o corte súbito na garganta
não nos esvairíamos em sangue na mais larga
avenida

eu sou livre
eu espero
o último comboio
o único corte
o sangue de quem ama
a gélida estação
eu sangro do lado de fora
da janela.


delay

aprenderemos a morrer cada vez mais devagar
a comer, com prazer, a fruta da época
a não duvidar das intenções do destino
mesmo quando nos doem os pés

a luz não passará da ausência de escuridão
nunca pedimos tão pouco
nunca recebemos tão pouco
e o pouco parece tanto nos últimos dias

acenaremos às derrotas fingindo
ter aprendido lições que não compreendemos
a moral da história será cada vez mais imoral
à medida que a morte se aproxime de nós

tudo terá o sabor do sangue turvo a correr nas veias
afinal, o único ritual que conservamos desde o
nascimento.

choraremos cada vez menos
porque aprendemos que o coração
é um balcão de perdidos e achados
onde colocas tudo o que não sabes onde pousar
onde outros vão buscar coisas que dizem ser suas.

morreremos cada vez mais devagar
morreremos cada vez melhor.


"dia primeiro de agosto"

a chuva é lenta e cai copiosamente
sobre os muros
como que a devolver as balas
às mãos dos atiradores furtivos
da noite anterior.

por sermos ímpares
a vida nunca nos parou
lado a lado

embora tenhamos baralhado
partido e repartido todas as cartas
lançado para a mesa ases de trunfo
como dois velhos que se excitam
com a exactidão de um tempo
que não foi.


quarta-feira, 3 de agosto de 2016

"este livro é do meu morto"


das falácias, do abismo

este caminho é tão velho
como os teus dedos tensos
sobre a ferida.

tu sabes tudo.
que mais queres da vida?
vê como se curvam
as musas perantes os teus
olhos

as lágrimas na imobilidade
das balas, escombros de uma
cidade que não amanheceu.

esta ferida tem
o tamanho certo
para a eternidade.


ninguém

ninguém nos virá segurar as mãos
quando nos deixarmos cair cansados
no canto do sofá, de costas no soalho.
será apenas a música a perfurar 
os tímpanos delicados da razão

não virá ninguém, chegar-nos as
palavras à boca quando deixarmos
de conseguir ler e os dedos falharem
na aproximação aos lábios.

talvez te escondas para fechar os olhos
ou esperes pela madrugada para mastigar
a dor que te atravessa como um grito
que não soltarás. daqui quase é possível
perceber que a noite não existe.

que o sorriso não existe, são as sombras
a fabricar correntes de luz contra as paredes.

cometo todos os crimes no encontro dos astros
e a dor não é nada mais do que um animal
perdido nas ruas da cidade, ou um saco plástico
que esvoaça contra os sinais de trânsito
(inúteis a esta hora)
 a minha dor inútil em todas as horas

ninguém nos virá pôr as maos nos joelhos
olhar-nos nos olhos, dizer que as doenças
são o que nos lembra que estamos vivos
que o fulgor da lâmina a rasgar a pele
é o mais próximo que teremos da plenitude

que gritares ou não gritares, é indiferente
e o mundo vai continuar
dentro de poucas horas as ruas onde
agora vês poesia, estarão cheias de gente
amantes, criminosos, assassinos de estrelas.

não virá ninguém dar sentido à existência
dos sentimentos por dissolver
colocar rótulos nas coisas mais bonitas
para que te lembres
que o amor será sempre o que está por acontecer
e que as palavras certas só existem
enquanto os envelopes estão fechados.






meu amor
eu não sei a cor dos teus olhos quando cerras as pálpebras
se o que vês são cornucópias ou filamentos monocromáticos

toco os teus olhos e tento adivinhar como são velhos estes caminhos
como disfarças o medo e a paixão na crueldade de um dia que não quiseste

meu amor.
as agulhas que me crescem no lugar dos dedos
têm a aspereza da vida inteira
e eu sou ferida quando devia ser salvação.

(perdoa-me)


terça-feira, 2 de agosto de 2016

dispersões

pega na garrafa, bebe água
disfarça, diz-lhe que estás muito
incomodada com a claridade.
apressam-se a fechar cortinas,
não resolve.

sou fotossensível,
tenho o sol a bater-me no monitor
deve ser dos olhos claros
detesto ter os olhos verdes
ah são verdes? parecem azuis
quer dizer.... cinzentos
pois, depende da luz

vou fumar, um cigarro.
acendo, tudo bem e contigo?
é, entrou-me fumo para os olhos
esta merda deste rímel
devia ser à prova de água

preciso de ir ao outro lado
comprar qualquer coisa.
porta fechada, foda-se.
disfarça. acende outro cigarro
rápido. pensa numa merda
qualquer esquisita.

já pintavam os muros
de outra cor
vai no elevador
disfarça, esta luz hoje
mata-me, sorri.

senta-te, estás bem?
sim, é a luz, é o fumo
é o rímel.
sou fotossensível
do lado do coração.



dizer-te


mirror, mirror on the wall

talvez te vá dizer muitas coisas que não gostas de ouvir.
na verdade, nunca fui muito delicada com as palavras.
eu sei que as palavras magoam e sei que não gostas de algumas coisas que eu te digo.
o propósito não é abrir feridas, mas não faço nada para o evitar, eu sei.
eu sei que as palavras doem, olha para mim, cheia de cicatrizes invisíveis.

eu não te magoo com intenção, mas eu sou má intencionalmente.
eu gosto de ver a corda esticar, gosto de rodar a pele do braço até não aguentar a dor.
eu sei que sou má e digo coisas que tu não gostas.
faço-te o mesmo que faço ao meu braço, a questão é
quanto tempo aguentarás tu? eu sei quanto tempo aguenta o meu braço.

tu tens um certo prazer em ouvir coisas que não gostas.
testas a tua serenidade, pões essa calma aparente toda na balança.
lá consegues manter o equilíbrio, tu não dizes coisas que eu não gosto.
mas eu não gosto das coisas que tu não dizes.
e tu sabes disso, é a tua melhor vingança.
e tu sabes tão bem disso.e isso sim, é propositado.

sabes que eu odeio as coisas que tu não dizes
e por isso eu vou continuar a dizer coisas que tu não gostas
até a pele se romper, até a corda rebentar.
depois fingimos que foi o destino.
que também é uma mania nossa
para nos livrarmos da culpa.



traços


a mota arrancou
desceu a rua em direcção ao mar
por instantes houve silêncio
depois os travões do autocarro chiam
ao encontrar um semáforo vermelho.
segundos depois um avião faz-se à pista.

as gaivotas iniciam os rituais da loucura
sobrevoam os lugares nocturnos
choram mágoas anteriores.
tudo acidentalmente sincronizado
como se cada momento fosse previsível.

gosto dos barulhos do amanhecer da cidade
os moínhos de café, as cadeiras da esplanada
ligeiramente arrastadas para o seu lugar
as cortinas nas casas perfeitamente alinhadas
um vento frio que nos faz adivinhar um dia
de temperaturas altas.

ninguém para dar nome ao desassossego
o sol ilumina já metade da ponte
adorarias se visses como se ilumina
o alcatrão a esta hora.
todos me parecem imortais ao amanhecer.


tu e eu, imortais ao amanhecer.




segunda-feira, 1 de agosto de 2016

fotograma V

acabou o cigarro, apago-o
como se fosse possível fazê-lo desaparecer.
nunca sei onde pousar as mãos
quando apago o cigarro.

nunca sei para onde olhar
senão para a cadência da cinza
sobre o cimento.

a música acabou.
não sei para onde desviar o sentimento.
esta é a maior crueldade

estar entre cigarros
estar entre músicas
no exacto momento
em que nada acontece.


do impossível (chamava-se assim)

escrevi uma merda esta manhã sobre ser feliz.
apaguei, detesto ler o que escrevo sobre a felicidade.
coloca-te sempre mais longe.

vou só resumir:
os meus olhos seriam tão mais felizes se te tivessem visto crescer.

José Saramago - A Caverna

"Distraíra-se com a demolição dos
prédios e agora queria recuperar o tempo perdido, palavras estas insensatas entre as que
mais o forem, expressão absurda com a qual supomos enganar a dura realidade de que
nenhum tempo perdido é recuperável, como se acreditássemos, ao contrário desta verdade,
que o tempo que críamos para sempre perdido teria, afinal, resolvido ficar parado lá atrás,
esperando, com a paciência de quem dispõe do tempo todo, que déssemos pela falta dele"