terça-feira, 29 de novembro de 2011

cartas


gota de chuva,


os dias passam a voar como pássaros sem casa
diluem-se, atravessam-nos os dedos como água
pó solto no ar mais puro

se pudesse dar-te o mundo, certamente não seria este
cheio de feridas abertas e incalculáveis jogos

um universo em que não nos desencontrássemos em todas as ruas
em que as promessas nos encontrassem desprevenidos

um espaço em que me fitasses com o teu sorriso mais limpo
e eu não tivesse nunca que te perder.

c.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

começa com uma menina a brincar com o medo. gestos bruscos na amplitude da casa. a mesa posta numa organização assumidamente real.
depois um tiro no coração, certeiro. falta-lhe o ar e o chão. o vazio invade o olhar distraído e a anestesia dura anos.
a menina levanta-se e percorre o interior de todas as coisas. perdem-se os significados e não se ganha nada.
corpos adormecem todos os dias diferentes, movem-se e disparam verdades em direcção aos ossos. A vida não vale nada, não existe.
Apenas um quarto e passos inquietos a rodear a cama. Durante meses não se abriu uma janela. 
sexo, corpos e incenso
intenso
imenso

construiu-se uma muralha quase indestrutível.


silêncio.silêncio.silêncio.silêncio.silêncio


depois a menina, segura dos seus passos escreveu a história, o bem, o mal e os opostos.

mas tu chegas e nada disto faz sentido.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

cartas

dizer-te só.


que não há nada para além de ti no cinzento deste dia.

eu sei
que nos bancos do jardim continua a morrer gente
e que as valetas continuam por limpar nas ruas onde passas

que nos meus sonhos não nos perdemos de nós
enquanto os outonos passam com a violência de um grito

só o teu sorriso, uma estrada interminável
em que abro o meu peito à crueldade da saliva

tu sabes
que não tenho nada mas sonho um universo inteiro
para te alcançar.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

do que não fomos I


Prometi escrever-te.

O dia amanheceu claro, apesar do Outono, e tu foste a primeira memória quando, ainda dormente senti a fragilidade  da manhã. Foste tu, que me abriste os olhos com os teus lábios.
Fumo um cigarro enquanto te vestes. Olho-te e não posso querer mais nada para além deste momento perfeito em que te vestes. E és só tu e as tuas roupas, despenteado e preguiçoso.
Vais passear o cão, levar o lixo, roubar-me a alma, não percebi bem o que disseste. Vi apenas os teus lábios moverem-se na minha direcção.
Imagino tudo. Tu, a afastares-te devagar, as tuas costas onde deposito os meus fracassos. O peso que carregas, o da minha existência, do meu não poder. Tudo o que eu não quero.
Quando voltares eu já desapareci, não vais lembrar-te de mim. Restarão apenas algumas sensações que não saberás decifrar e esta página escrita. Vais pensar que a retiraste de um livro sem valor qualquer que leste há muitos anos.
A vida vai continuar, a tua casa, os teus filhos a brincar em jardins imaginários, outro corpo na cama a abraçar-te. A dar-te tudo o que não posso.
Mas não existe mais nada, só este momento perfeito em que te vestes e eu me apago sem dizer nada. E eu me dissolvo no desejo de ti.

domingo, 20 de novembro de 2011


olhos.bocas.mãos.olhos.bocas.mãos.regressos.olhos.bocas.mãos.olhos.bocas.mãos

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

nocturna

sou daqui, do lado mais fraco do corpo
onde todos os dias nasce uma palavra
     um submisso desconforto
cortante e ácido (flácido) na
incons
tância da pele.

sou daqui
da franca melancolia do sangue
onde rebentam as horas, as horas
as horas onde rebentam
os dedos.

como pode a boca tocar o braço?
rodopiante sentido do tacto, morde.
me.a dor.

como pode esta noite ser tão errada.
semi-cerrada esta noite
entorpecida
louca.

nocturna


c.

sábado, 12 de novembro de 2011

não me lembro. já não me lembro. do dia em que te perdi para as doenças do quotidiano agora que sou eu a rasgar folhas com facas de saliva e os meus dedos dormentes não silenciam as monotonias e os acasos saio de casa com a tristeza dos dias seguintes juro procurei o teu ponto de partida em todas as minhas memórias mas vi apenas um comboio parado em redor de restos de gente nem os teus lábios na saciedade da boca alegrias que não nasceram nos teus olhos apenas eu, desencontrada e só sem saber como dizer que às vezes nem eu sei escrever a tua ausência c.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

no meu testamento, duas asas de chumbo torrencial.

percorro o teu silêncio na órbita esbranquiçada do corpo
do que perdi, apenas um rumor se ausculta voraz
os dedos são casas de nós e nada escuto no seu interior.
do resto da noite lembro apenas o assobio do rapaz sentado
mais perto da imobilidade e dos escaravelhos que esgravatavam
o envenenamento dos anos.

ao chegares à cidade verás uma ponte com dois corredores de luz
o cinzento acabará por te matar mas segue em frente.
é uma caixa fechada e agora só tu a transportas.
ao chegares à cidade devolve o estremecer aos inocentes
e não lhes contes da trepidação dos ossos no encontro das mãos.
é na rua mais longa que verás o fumo projectar-se na evaporação dos astros
quando olhares as musas nos olhos e elas fizerem fluir a abrupta
consumação das feridas

dos rios que correm densos, meu amor,
só as aves perseguem entorpecidas
os lábios secos da eternidade.


c.

domingo, 6 de novembro de 2011

deixa-me morrer neste abraço

a voz parecida com a chuva de novembro
que ecoa para lá dos vidros embaciados
do canto da sala em que gostas de estar.

não me digas que é preciso
-esquecer-
não é preciso
-esquecer-

este amor.

que se te mordi os lábios
foi para prender-te
ao etéreo sangue da presença
-absurda-

hope you can remenber
que mesmo quando
te morro
não precisas
-esquecer-

ea
sm
to
er.

que nos cortou cortou nos cortou
por dentro dentro por dentro cá dentro

c.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

simbiose

tu eras todo o sangue
as palavras desciam-te à boca
como dardos envenenados,
e eu envelhecia a ver-te falar
de in-vitros insignificantes.

tu eras todos os momentos
as mãos subiam-te ao pescoço
numa tentativa inútil
de esterilização do tempo.
eu torcia a pele do braço
para evitar ouvir-te.

tu eras todo o espaço
todos os ossos do meu corpo
tu.e.ras pessoal e intransmissível
como o medo.
monocromático.
sem sintomas.

cláudia ferreira
como se esperasses o momento certo,
o café entornado na toalha branca
a roupa suave e limpa nos estendais
o candeeiro aceso a dez palmos do teu rosto,
como se esperasses a borboleta no tilintar dos ossos,
o corpo inteiro e anoitecido numa incerteza nuclear.

a doença mais trágica no trânsito das palavras

como se o momento escorresse na insípida cólera
dos gestos
e me afundasse na língua o nome mais distante
deste dia [que nasceu em ti]


c.