sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

será que ainda te reconheço?

poderão outros cabelos parecer-me os teus
ou outra mão imitar o teu toque no cumprimento cordial
poderão outros lábios ser os teus lábios
e outra boca a equação do homicídio perfeito

saberei do teu peito quando o meu corpo cansado
ceder e se deixar cair na espiral iluminada da morte
terás o mesmo cheiro ou a vida ter-te-á traído como a mim?

como saberei se és tu que andas à minha frente nas ruas da cidade
ensina-me a perceber o teu gesto quando pedes um café ou um bilhete de comboio
como poderei saber se vens às 8 da manhã ou às 3 das tarde?

vai ser verão ou as árvores já estarão despidas?
poderás tu reconhecer-me agora que tenho o corpo coberto de espinhos?
e a alma, vai saber? vai ceder ao retrocesso?

se me encontrares, conta-me do dia em que nos conhecemos
gostava de ouvir-te falar desse dia visto dos teus olhos
ou não digas nada porque o silêncio foi sempre o que nos definiu.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Talvez tenhas deixado uma luz acesa
Ou a marca dos teus dedos no pó dos meus livros

Para não te perder o rasto.

Quando fecho os olhos e as sombras translúcidas
Atacam o meu corpo ferozmente, sou convulsa.

E o teu silêncio amanhece cravado nos meus lábios
Como uma lâmina de inocência apodrecida
E o teu nome que não pronunciarei nunca mais
Rasga a ténue nuvem de sal que me escorre do rosto.

Para não te perder o rasto.
Escrevi todas as palavras nas paredes de casa
Guardei todas as flores do recomeço
Secas e nauseabundas
Fiz-me acreditar na inevitabilidade da morte.

E morri tantas vezes a procurar-te dentro de mim.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Escreve aí qualquer merda sobre a arte de escrever.
Como é lindo o momento do encontro com a caneta ou com o lápis se te parecer mais poético.
Mete aí umas palavras caras que ninguém perceba e repete trezentas e vinte e cinco vezes a palavra amor e fá-la rimar com dor ou com fervor se quiseres assim uma cena mais erótica.
Sei lá, faz uns desenhos também ou põe uma andorinha em pleno voo. As andorinhas são muito poéticas e as fotografias não cagam.

E fala de escrever como se fosse uma arte e um ofício erudito e que nem toda a gente pode alcançar.
Ah, pois é bebé, tu é que és o escritor? O SENHOR ESCRITOR.

Se soubesses como dói cada palavra a escorrer pelos dedos.
Escrever os vazios, descrever os vazios.
Voltar ao início constantemente, como um bicho, bater sempre de cara inevitavelmente.
Ter a sensação de estar finalmente de pé e chegar à conclusão que não se tem merda nenhuma.
Viver a vida como um acidente, uma coisa que te aconteceu sem quereres.
Viver, inspirar, expirar. Fingir que faz sentido, ser-se maduro em vez de apodrecido.

Esquecer o momento, aquele único e terrível momento em que os olhos se cruzam e se enroscam inevitavelmente,finalmente e eternamente vazios.
Estou cansada.

Tenho as costas rasgadas pelo frio e os olhos inchados pelo vício.
Entraste sem fazer barulho, o vento continuou lá fora numa avidez infernal.
Chegaste, pousaste o tabaco, depois a chave.
Tiraste o casaco. Olhaste à volta, normal. Tudo normal.
Tudo irremediavelmente normal.
Tudo arrumado nos mais desesperantes lugares.
Os lugares certos.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Caminharei sozinha e, a custo,
Daqui a alguns anos conseguirei dizer o teu nome
Não sem que me doam os dedos
Não sem que me sangre a garganta
Mas caminharei porque o vento de dezembro
Me rasga o peito e me engasga a voz.

Caminharei sozinha, tão só quanto nos teus dias
Em que a dor era a tua mão pousada sobre a minha
E as cicatrizes gemiam nas avenidas e os faróis dos carros te faziam brilhar os olhos

Não saberei viver nunca mais
Não porque me falta o teu amor
Mas porque me falta o medo indizível de perder a tua pele
Porque não fui mais nada para além de nós
Porque não existi fora dos teus versos
Porque não me entreguei fora do teu quarto
Porque me perdi dentro do teu beijo.

Porque me esqueci irremediavelmente. De ti.