sábado, 17 de setembro de 2016

Fim
sabes como detesto as palavras. as minhas palavras, o que digo, o que escrevo. as palavras fazem existir o que sou, odeio.
se não fossem as palavras, não teriamos sido nada. não seriamos nada agora, pó sobre os móveis ou objetos de enfeitar a morte.
mas é sabádo, um dia que eu costumo gostar e eu detesto tanto as palavras que tenho coladas à pele. esta saudade que parece queimar como tudo o que sou.




sexta-feira, 16 de setembro de 2016

copenhaga

diz-me o que te faz sorrir
que eu tratarei de o teres todos os dias
ainda que a ausência sejam folhas secas
a povoar os dias e conversas inúteis se
alastrem para lá das horas.

diz-me por favor que sorris todos os dias
ainda que saber-te feliz me arrefeça os
músculos e me traga à boca o sabor
ansioso dos pretéritos. essa luz que
não se apagará nunca no centro das mãos
os desejos que percorrem agora devagar
a plenitude oca do silêncio.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

exercícios do esquecimento

nas tuas mãos
esquecer que existo.


aleatórios

mandaram-te fechar a janela
e tu fechaste
mandaram-te serrar a madeira
e tu correste a amontoar lenha
junto ao muro da entrada
mandaram-te vestir a camisa
e tu vestiste
e que ar de menino direito
com que ficaste!

e na hora de te deitares
adormeceste
com a lenha a arder na lareira
talvez sonhasses
da boca que se entreabriu
tu não esqueceste
do amor que ela quis
que lhe emprestasses.

quando o dia amanheceu
tu não soubeste
se era teu o coração
despedaçado
e da janela que tu querias
não ter fechado
brotou a luz mais pura
que conheceste.



quarta-feira, 14 de setembro de 2016

geometria descritiva

não brinques com as palavras

as pa lavras são coisa séria
a sério?

gosto de esquecer palavras difíceis
como
nós

dos dedos
são segredos?
de marinheiro
cortadas ou por in teiro

serão?
cONceito básico da negação
e tristeza.
ora concerteza senhora
por que não?

eu esqueço.
adormeço?
pois adormeça
e esqueça.
pois então
não brinques
com o coração.

e por que não?

lilases e outros sacrifícios

gostava de escrever-te coisas cheias de ternura, como os teus olhos. coisas cheias de emoção como os teus lábios. gostava de escrever-te sentimentos tão longos que teria que mudar de linha infinitamente.
palavras a fazer covinhas no teu peito. palavras com beijos a provocar a dilatação dos poros.
dias inteiros sem luz  a minha cidade tão perto da tua cidade. os teus pés, as tuas mãos no meu trapézio e as mãos tão compridas. os braços tão tensos, cheios de ternura como as palavras que eu gostava tanto de te escrever.

acendes-me o cigarro depois do livro, o cigarro depois do café, o cigarro depois do orgasmo, o cigarro depois do jantar.e eu invento uma história para te contar ao ouvido. e tu perguntas-me se é verdade e eu digo-te que a verdade foi uma coisa que os adultos inventaram para ter onde pousar os pés. e eu escrevo-te coisas cheias de ternura. pequenos papéis que espalho pela casa e depois prometemos que eu me esqueço de ti e tu te esqueces de mim. coisas cheias de ternura, era o que eu gostava de te escrever.


small talks

esta luz é insuportável.
esta luz sobre as cabeças suadas destes homens e destas mulheres
é absolutamente insuportável.
eu grito, gesticulo, eu faço parte de uma humanidade que não tenho.
eu falo muito alto para não ouvir a minha dor e distraio os músculos para não sentir a minha dor.
e esta luz, a bater-me fundo nos olhos, a rasgar a retina, esta luz. ou digo antes esta fotografia.
ou digo antes este café, este café é intragável. demasiado quente, demasiado áspero.
este chão, este solo demasiado tortuoso. os dias enfeitados de coisas tristes. os dias com feridas conservadas em álcool. e esta luz a bater nos meus joelhos, o barulho da água a correr dentro dos canos. insuportável.
já li cento e quarenta e cinco páginas do livro. já me doeram os olhos cento e quarenta e cinco vezes e quase chorei trezentas e trinta duas lágrimas. e ela, com o seu vestido preto tão perfeita, o pescoço esguio. uma angústia, uma inquietação tão grande como a minha. apetece-me abraçá-la. dizer-lhe: eu sei, personagem do meu livro. eu sei que te dói o coração até às entranhas. e que gritas muito alto, e abres as mãos e gesticulas para não ouvires a faca atravessar a pele. é mais fácil se houver muito barulho.
mas esta luz, este lugar, esta cadeira, esta sala, esta cidade, este país que não me serve. esta dor em que eu não caibo. insuportável. o suor a escorrer na nuca destes homens e destas mulheres e a luz. a luz. insuportável.



nada

eu, que não sei sorrir. que me olho em frente ao espelho e treino. parece-me que tenho demasiados dentes na boca. ou os dentes são em número certo mas são tortos ou muito pequenos. não sei qual é o problema mas eu não consigo sorrir. eu fico em frente ao espelho e penso numa coisa muito muito boa. como por exemplo naquele dia em que disseste o meu nome pela primeira vez. eu penso nisso mas não sei sorrir.

que queres que te diga? às vezes pareces-me o mais miserável verme, a subir pelas minhas pernas, pelas minhas coxas, eu com medo, a sorrir de medo. pareces-me tão forte, tão seguro de ti.
depois fecho os olhos por dois segundos e quando os abro, já és todo arrepio e medo e eu sinto-me culpada e fico a pensar que devia ter-te abraçado.

eu já revi todas as fotografias. normalmente não sorrio. quando o faço, nota-se perfeitamente que não sei. eu treino e penso em coisas muito muito boas, geralmente és tu nos meus sorrisos tortos ou demasiado pequenos. não sei qual é o problema.


Wordsong - Al Berto 14 de Janeiro

o dia começa assim.
vieste ao meu sonho, pegaste na minha mão e beijaste-a.
não te vejo há tantos anos e, esta noite vieste beijar-me a mão.
como se soubesses sempre o que preciso.


terça-feira, 13 de setembro de 2016

revisão de aulas anteriores - filme de hoje


Mão Morta - Tu disseste



TU DISSESTE
[Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro]


Tu disseste "quero saborear o infinito"
Eu disse "a frescura das maçãs matinais revela-nos segredos insondáveis"
Tu disseste "sentir a aragem que balança os dependurados"
Eu disse "é o medo o que nos vem acariciar"
Tu disseste "eu também já tive medo. muito medo. recusava-me a abrir a janela, a transpôr o limiar da porta"
Eu disse "acabamos a gostar do medo, do arrepio que nos suspende a fala"
Tu disseste "um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro por descobrir"
Eu disse "..."
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"
Tu disseste "agora procuro o desígnio da vida. às vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon. escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo. depois queimo tudo e prossigo a minha busca"
Eu disse "eu não faço nada. fico horas a olhar para uma mancha na parede"
Tu disseste "e nunca sentiste a mancha a alastrar, as suas formas num palpitar quase imperceptível?"
Eu disse "não. a mancha continua no mesmo sítio, eu continuo a olhar para ela e não se passa nada"
Tu disseste "e no entanto a mancha alastra e toma conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês"
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"

nada

a tua angústia é tão diferente da minha, dizia-te. e os meus olhos pousavam nos teus e tu percebias imediatamente o significado das minhas palavras. a minha angústia, como o fecho do vestido que desapertas devagar. depois eu pousava a minha mão na tua e dava nomes às linhas das tuas mãos e era tudo tão simples.
aqui, na tua mão direita, esta linha significa que a guerra acabou. sorris, abraças-me e gritas que a guerra acabou. mesmo que lá fora continuem os aviões a bombardear as casas. nunca era a nossa. e eu dizia a guerra acabou e era fácil, acabava mesmo. a minha cabeça no teu peito no fim da guerra ainda que persistissem os bombardeamentos lá fora.
cheira a mortos, dizias e eu silenciava-te com os dedos. perdi-me a olhar-te a escrever esta manhã, talvez tenham apodrecido todos os frutos lá fora porque sei lá, me pedi a olhar-te esta manhã a escrever. não são mortos, são as maçãs, são as laranjas, são os figos, são os frutos podres porque me perdi esta manhã.
e tu sorrias e abraçavas-me e lá fora os mortos e os bombardeamentos e a tua angústia tão diferente da minha e o vestido a deslizar. tão simples.


nada

para ti não.
nunca foram os meus olhos, nunca foram os nossos dias, nunca foi aquela noite que não chegou a acontecer.
nem os lábios quase encostados, nem os dedos, o café, um primeiro encontro de dois segundos.
nunca foi isso.
foram sempre coisas tuas, que viveste sozinho. filmes em que não existem outras personagens. tu e os figurantes.
eu a figurar na tua vida como uma lâmpada que ameaça fundir. ou como aquele copo que pousaste mesmo na pontinha da mesa.
nunca foi o meu combate, ou a minha tristeza, nem mesmo a minha alegria mais rasgada. nunca foi nada disso.
o nós só coube na literatura antiga. foram sempre as tuas conquistas, o sol mais brilhante nos teus lábios cheios de ternura.

e a tua felicidade ao ter encontrado a fórmula da sobrevivência.
a tua felicidade, a tua sobrevivência
cravadas como bandarilhas no meu dorso.



nada

não sei como cortar um cadáver. pensava Ana olhando para Alberto deliciosamente morto em cima da bancada da cozinha.
talvez tenha que consultar a enciclopédia ou uns vídeos de anatomia, talvez deva treinar primeiro noutros cadáveres, prosseguiu.
quem olha agora estes dois, pela fissura que existe na parede mestra da casa, não poderia imaginar o quanto se amam.
ele morto, é difícil imaginar um morto com o coração acelerado e com as pernas a tremer. ela, acende um cigarro, limpa as mãos cheias de sangue à camisa verde. devíamos ter música Alberto, pensa. e começa a cantar uma música que aconteceu dançarem anos antes numa festa de uma terra longínqua onde foram para por mero acaso ao desviar-se da estrada principal devido a um acidente.
o morto quase sorri.
como cortar um cadáver. pesquisar. será que quis dizer como transformar o amor em pequenos amuletos?


a propósito dos filhos do paraíso

oh meu amor, como pudeste perder os meus sapatos cor de rosa.
os meus sapatos prediletos, os meus únicos sapatos.
diz-me agora, que mão se estenderá para a primeira dança do baile
sem os meus sapatos, que nunca saíram desta rua mas parecem
ter percorrido o mundo
tal como tu, com o teu rosto velho e triste, de quem viu
todas as mágoas e saboreou sentado à mesa, todas as indiferenças
sem ter saído sequer desta aldeia.
excepto uma vez, em que quase morrias das doenças mundanas
dos sabores boémios da contradição.

como foste capaz meu amor, de perder os meus sapatos.
como serão agora vividos os dias, alternando os pés
para não doer tanto o coração.



segunda-feira, 12 de setembro de 2016

nada

abro-te a porta e digo, peço desculpa mas não estou. encontro-me ausente ou desencontro-me ausente. talvez ponha só um papel na porta que diga "volto já". ou não diga nada. ninguém precisa de saber. provavelmente nem virás aqui à porta e, se vieres é para dizeres que é melhor preparar-me que vai chover. que é melhor vestir o casaco que vai estar frio. ou para dizeres que eu devia fechar as janelas porque entra vento. ou que te esqueceste da chave no outro dia e queres saber se a engoli.
ou seja, venhas ou não. eu não estou. vou ficar muito quieta e tentar não fazer barulho a respirar embora quase vinte anos de tabaco já se comecem a notar no volume da inspiração.
também se vieres, bates uma vez à porta e desistes, pensas foi às compras ou viajou ou deve ter ido ao café, passa a vida no café. ou não pensas nada ou pensas que te enganaste, ainda bem que não está senão o que lhe diria. de quem é esta casa afinal, pensarás. depois achas que enlouqueceste e que andas a bater à porta de pessoas que não conheces.


nada

estou sempre a escrever a mesma coisa. não preciso que me digam porque eu sei. nada de novo, nada de especial, nada de verdadeiramente importante. estou sempre a escrever a mesma coisa.
banalidades, tretas, sentimentos que deviam arder onde deviam arder. fechados em algum frasco para lhes faltar o oxigénio.
não, não somos iguais, nem parecidos, nem os nossos caminhos foram semelhantes. não comemos da mesma terra, nem nos contentamos com o mesmo nascer do sol. somos tão diferentes quanto é possível ser do lado de cá da neurose. eu não me importo com copos, meios vazios ou meios cheios ou com a música que toca no supermercado.
decerto concordarás que, mesmo o mais vil dos pecados exige alguma exclusividade. pede que se pare a contemplar por determinado tempo aquilo que lhe é único.
mas tu já sabes tudo isto, porque eu estou sempre a escrever a mesma coisa. ainda que não o escrevesse, tu saberias. sabes também que devia ter seguido a minha intuição desde o princípio. devia ter ouvido a voz que me mandava correr, devia ter corrido e fugido do papel e da caneta.
mas eu não me importo de ficar com a culpa outra vez, não é a culpa que me pesa. é saber que por muito que eu tivesse aberto janelas, destruído muros, empunhado espadas incrivelmente afiadas tudo seria igual.
estaríamos precisamente nos mesmo lugares, a contar as mesmas histórias, a evitar os mesmos acidentes.
eu escrevo igual a todas as outras mulheres que te escreviam o número de telefone no vidro do carro, ou que te entregavam bilhetinhos por baixo da mesa ou que te agarravam em jeito de provocação. exatamente igual a qualquer uma delas.
na tua cabeça, uma fila de mulheres iguais a fazer concursos de misses para te agradar, e eu sentada sempre a escrever a mesma coisa, coisas que nem tu nem eu gostamos. mas isso sou eu, sempre meia cheia, sempre meia vazia, a escrever coisas sem qualquer interesse. tão iguais ao que está escrito nos espelhos dos motéis ou nas casas de banho das áreas de serviço.
mas isto são tudo coisas que eu já escrevi milhões de vezes, nada de novo, nada de especial, nada de verdadeiramente importante.


domingo, 11 de setembro de 2016

não sei se lamento ou invejo
aqueles que não te conhecem.


sexta-feira, 9 de setembro de 2016

foram tudo cidades que criamos
dentro das nossas cabeças em pequenas
ampulhetas de vidro fino e frágil

cidades sem conceitos nem moral
mas cheias dos bons costumes da paixão
e candeeiros com luz amarela a iluminar
os becos. tristes animais abandonados

sem tempo ou espaço, tristes bichos
de olhos acesos e patas húmidas.

em volta (envolta)

nas tuas palavras. eu quase me encontro nas tuas palavras. mas de repente, é uma mulher que não fuma. ou são cabelos negros lisos e vestidos de seda vermelha. e eu percebo que não sou eu nas tuas palavras. que não sou eu na tua boca, que não sou eu a recolher-me no teu corpo. eu, às vezes, iludo-me e leio um livro de oitocentas páginas para me provar que gosto de ler, para me encontrar nas palavras de alguém. mas depois é um homem de nariz grande e camisa aos quadrados e eu percebo que não sou eu naquelas palavras. talvez deve-se ler só a primeira frase de todos os livros, de todos os teus discursos. talvez devesse ouvir só a primeira frase de todas as conversas, de todos os anúncios publicitários. e seria sempre eu nas palavras e não apenas a minha sensação de não me encontrar em lugar algum.

um dia eu pensei mesmo mesmo que era eu nas tuas palavras. mas depois era amor e eu percebi que não. devia ter lido só a primeira frase.


quinta-feira, 8 de setembro de 2016

este é um lugar de mortos
estes são os meus cadáveres


sorriso pequeno


afinal o que te resta para além de ser
um átomo que se ilude e se julga alma
ou um baralho de cartas só com
oitos e noves e dez


para além de todo o fumo que te esconde
na inevitabilidade da última dança
os pés acesos e as mãos encostadas
em forma de coração


sugar

a verdade é até relativamente fácil de aferir. estivemos sempre cheios de gente à volta, essa é a verdade. quando não foi na mesa ao lado, quando não foi dentro da casa, quando não foi com o braço encostado no autocarro, foi dentro de nós. mas nunca estivemos realmente sozinhos e essa é uma verdade que aceitarás com facilidade.
mesmo quando eu te dizia, o mundo somos nós e eu não consigo distinguir as cores dos semáforos, eu não sei se as pessoas que se cruzaram connosco usavam casado ou traziam guarda chuva. mesmo quando eu te dizia isso, não era verdade.
ainda que nos imaginasse nos velhos western com o teu cavalo com nome de parque de diversões, e eu com o meu vestido às flores encardido, a servir cerveja a homens com cheiro de terra. mesmo aí, nunca era só tu e eu. no mínimo havia sempre o cavalo a relinchar o teu nome.
a verdade é fácil de encontrar, como vês. no único momento que estivemos perto de estar sozinhos já era tarde, e tínhamos tanta coisa para fazer que imediatamente ficamos novamente rodeados de fantasmas.
é a nossa história, cheia da história dos outros e com quase nada nosso.




hoje acordei com Queen.
não me lembro de ter conduzido até aqui
da cor do isqueiro com que acendi o primeiro cigarro
se tomei café. tomei café?

mas os teus lábios.
hoje acordei com Queen.
mas a tua boca.



da linha ténue

aqui as aves são feitas de papel
foi tudo premeditadamente criado
para atear fogos de sombra e cal

a combustão só acontece na hora
marcada. a rotina e o musgo travam
as investidas dos animais selvagens

aqui existe uma jaula imaginária
de palavras cruas e longas que
imaginamos nunca terem sido escritas

talvez um homem, talvez uma mulher
um dia suba para cima da pedra
e tenha coragem de anunciar a morte

ou as linhas continuarão desenhadas
e os cães esguios por entre os arbustos
e as luzes mornas nos caminhos estreitos

e nada se moverá no vento que, aqui
são estrelas adormecidas. talvez
apenas o estertor das bocas por consumar.


quarta-feira, 7 de setembro de 2016

numa quarta-feira qualquer
talvez nos aconteça tropeçar
ou talvez nos atrasemos uns minutos
numa quarta-feira qualquer
eu prometo
vamos ser felizes para sempre.


M-150

tu sabes que eu passava os dias a molhar os dedos na língua e a passá-los na beira do copo. e era essa toda a música que se ouvia na casa. por vezes deixava a janela aberta para a chuva fazer ricochete e molhar os teus livros. e eram tão suaves os meus dias de tocadora de copos de cristal, com vista para o mar.
às vezes ligava a televisão. um dia ouvi, na televisão, temos que aprender a distinguir sexo de amor. dei por mim a discutir com a televisão, temos? temos? temos? por quê? chateia-me que tenhamos que distinguir as coisas, que tenhamos que seguir as 25 linhas do caderno, pisar só as riscas brancas da passadeira.
eu não tenho que distinguir nada digo enquanto molho os dedos. amor é menos amor se lhe chamamos cão? ou será mais, provavelmente mais. foi um mau exemplo.
não quero saber. deixei de ver televisão. prefiro não conhecer os conceitos.
tu sabes que eu passava os dias a escolher as cores da tua roupa e a enrolar novelos de saudade que guardei na última gaveta da tua mesinha de cabeceira.
quando voltares da guerra eu vou molhar os dedos na língua e tocar música no teu corpo como no tempo em que não tínhamos televisão e não sabíamos o significados das canções.


girl, you must be ready to get me what i want

acordo leve, esfrego os olhos com os dedos. esqueço-me sempre de tirar o rímel antes de adormecer. acordo leve com os olhos sujos. pensei que talvez pudéssemos tomar um café naquele jardim que te mostrei e a que nunca foste. antes mesmo de lavar a cara, de pôr o pé fora da cama. pego no telemóvel, estico-me para chegar ao telemóvel que deixo cair no tapete. estico-me para apanhá-lo no tapete. nenhuma mensagem, nenhuma chamada, nenhum e-mail, nenhum alarme definido para uma qualquer hora do dia.
pensei que pudéssemos tomar café, enviar.
levanto-me e parece que me atravessa uma espada na zona lombar, devo ter-me deixado adormecer a ver televisão. lembro-me que se beijavam no filme e depois ele era assassinado por uns gajos quaisquer que apareceram a correr. não me lembro de mais nada.

não me apetece tomar banho, nem vestir, nem fazer a cama, nem pintar a cara nem mudar de roupa interior.
mas talvez queiras tomar café comigo. fumo sentada na banheira, dentro da banheira. as casas de banho são lugares tão sós, sempre me disseste que podíamos foder na casa de banho. eu dizia-te que não, é muito frio, e os vizinhos podem ouvir-nos pela conduta da ventilação e sei lá, as casas de banho fazem-me dores de cabeça. e tu dizias que eu é que sei. talvez me enchesse o peito de ar, eu é que sei, eu é que sei.
cai-me cinza na camisa de dormir, não quero saber. queres tomar café? passaram 7 minutos, não respondes.
abro a torneira e a água sobe, molha-me a roupa, apaga-me o cigarro. flutuo só por dentro do que não sei.

diz-me, por que é que é sempre tão difícil gostar de ti. por que é que tens sempre merdas para fazer quando eu quero só ficar aqui a olhar-te. sempre muito ocupado, menos para foder em casas de banho. para isso pareces estar sempre pronto, para a única coisa que eu não quero porque não gosto de casas de banho.
saio da água, esqueci-me de trazer toalha, que se foda. lavo os dentes. o telemóvel toca. és tu, sorrio.
respondes, é esse o teu problema, pensar demais. apago.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

shame

não devias ter mudado a fotografia de lugar
agora que morremos, a tua imagem devia ser
um pássaro pousado na escrivaninha.

a madeira brilhante, vestida de sol ao fim da tarde
os teus lábios mortos nos meus lábios mortos
na fotografia.

a marca da tua mão no meu peito. uma paixão
que mudou de lugar e agora habita
a névoa branca do que esqueceste.



shame man

quando chegares a casa estarei morta.
provavelmente pendurada no corredor. verás a minha roupa delicadamente dobrada assim que atravesses a entrada . por segundos vais pensar que é estranho mas ainda assim vais tirar primeiro o casaco. pendurá-lo junto às fotografias dos teus antepassados. fica-te tão bem esse casaco, pensarei eu morta. depois vais à cozinha, reparas que os cinzeiros estão limpos e aumenta a sensação de estranheza. é nesta altura que pensas que enlouqueci de vez, não te enganas. nunca te enganas, tens a puta da mania de acertar em todas as previsões. mas desta vez enganei-te um bocadinho, confessa lá. quando te dirigires ao quarto e esbarrares com o meu cadáver. talvez abra os olhos para perceber o alcance da tua estupefação. ou fico quieta como os mortos todos que conheces.
será que vais deixar-me ali pendurada ou cortas a corda para me ouvir cair no soalho? vais pensar, para além de ter enlouquecido, agora vai ficar aqui a impedir a passagem. foda-se.
eu nunca gostei de ti, vais dizer. estás a ouvir morta do caralho? eu NUNCA gostei de ti e eu vou-me rir, deitada no soalho ou pendurada no tecto, vais sentir a minha gargalhada percorrer-te todo o corpo.
afinal o que nos uniu foi sempre esta competição, saber quem sentia mais, quem conseguia abrir a ferida mais fundo. dizias, sente... sente... põe a mão no meu peito, tenho uma ferida até ao osso. e eu punha a mão toda, de uma vez, e sentia os teus órgãos em volta dos meus dedos e tu franzias o sobreolho como se te doesse um bocadinho. ah, meu cabrão, tu ainda fingias que te doía um bocadinho para eu ficar mais um dia.


mas desta vez ganho eu.




amor

não sei se te amo porque é bom morder os ossinhos das tuas mãos
ou porque tens dentro de ti as coisas mais feias que já vi.



shame woman

agora que decidi matar-te, tenho que escolher bem o lugar onde vou pendurar a tua cabeça. por mim, seria precisamente na parede em frente à cama. adormeceria a olhar para os teus lábios perfeitos e o sangue a escorrer ainda vivo pela parede branca. talvez sorrisses por saber que tive finalmente coragem.
não. ficarás melhor no hall de entrada a receber as visitas, gostarão de ver-te. afinal, tão bonito, um tom de pele tão apetecível e os lábios já roxos como os das drag queens de las vegas.
depois ponho a tua música preferida a tocar e talvez me ensines um passos de dança. as tuas mãos que eu imagino na minha cintura ou o teu olhar mais fundo na amplitude das janelas. dizes que me amas e eu peço que te cales.
tenho tanto em que pensar, talvez me deva livrar do teu corpo, simplesmente. quando perguntarem por ti, eu respondo peço desculpa deve estar confundido, não conheço ninguém que tenha um nome. mostram-me a tua fotografia e eu direi, se eu tivesse visto alguém tão luminoso, lembrar-me-ia, não conheço, eu nem sou deste mundo.



dos crimes perfeitos

a sala tem um espelho
e no espelho, o reflexo do gato
imóvel.
o armário tem uma gaveta
e a gaveta tem
a arma com que vou iluminar
os teus dias.
a mesa tem uma vela
e a vela cai no tapete
incendiando a casa.
o espelho tem um gato
a fugir.
a gaveta tem o amor a arder
a mesa é feita de cinzas.
não existe casa, eu rio
do outro lado da rua.
eu guardo o teu nome
na caixa negra do meu coração.
do outro lado da rua,
eu rio.




segunda-feira, 5 de setembro de 2016

pedido

dá-me a mão, tu e eu como palavras de espuma, ondas de um mar que não é visível de nenhuma janela. e tu gostas tanto de janelas, tu gostas tanto de ver a liberdade esvoaçante sobre os edifícios mais altos da cidade.
dá-me a mão e ajuda-me a atravessar esta noite. é o pedido que te faço sem falar porque contigo esgotei todo o dizer. olhamos o tecto que nos olha de volta, talvez penses que durmo ou que me esqueci de como chegar à tua boca.
não, meu amor. eu sei que é nas tuas asas que está o voo cru dos animais selvagens. estou só à espera que me apertes os dedos, enlaçados nos teus, que me dês a mão, que me ensines a atravessar esta eternidade de silêncio.


entrelinhas

olho-te enquanto esperas o café
os olhos cansados e os lábios pálidos
de uma noite mal dormida.
estamos demasiado exaustos
para contar as voltas da solidão
ou as flores que teimam em crescer
junto às escadas da casa.

deixaste a caixa do correio aberta
para que todos vejam que não
queres saber do que virá do outro
lado do mundo. que postal nenhum
te moverá em direção ao portão.

esperamos que chova ou que nos
seja possível nascer outra vez
numa cidade mais próxima do futuro
ou num lugar em que ninguém nos
conheça.

talvez os nossos dedos se encontrem.
frios e flácidos, fracos como o corpo
imaginário que inventamos numa
noite qualquer de cinema barato.

olho-te enquanto bebes o café
e todas as peças se juntam mesmo
que não queiramos, mesmo quando
não encaixam de forma alguma.
todas as peças se juntam e vejo
nos teus olhos a nuvem mais brilhante
deste dia.



ainda que me acuses de ter ficado algures
entre a lágrima e o firmamento
gostava que soubesses que, nos dias do passado
talvez o tempo corresse mais lento
e, quem sabe, poderia não ter que me pôr em
bicos de pés, para te ver.


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

cuidados paliativos para o coração


(cadernos 2003-2005)

ainda os selos de ontem numa mesa deitada
dirias: são olhos mordazes como candeeiros acesos
e a solidão é branca.
eu tinha um céu que me chovia aos pés
embora pensasses que não,
um degrau que sorria nos meus passos
muito embora me doessem as mãos
no encontro das coisas iluminadas.

encontro

são as minhas mãos, demasiados cansadas para o amor
ou os meus olhos, retalhos de momentos por acontecer
é o meu corpo todo em declínio a desistir dos incêndios.

a ponta dos teus dedos, que talvez me adormeça
numa noite em que não adivinho qualquer vento.
ou as tuas costas encostadas às minhas na varanda,
no momento anterior ao suicídio.


eu choro sentada no cimento frio da estação com a cabeça pousada nos joelhos e os dedos dobrados de raiva.
não. na verdade, estou encostada a uma parede irregular, com o bilhete de comboio entre os dedos, a imaginar como seria sobreviver a todas as fatalidades.
sonhei que não conseguia falar. e quando tentava, eram cabelos a sair-me da boca. novelos de cabelo e saliva. a minha boca como o ralo da banheira em que tomaste banho esta manhã.
sonhei que eras tu, nu, a sair-me da boca quando tentava falar. as tuas mãos, os teus braços, o teu sexo a sair-me da boca enquanto estremeço.
eu, encostada a esta parede amarela, irregular, com o bilhete de comboio na mão. já rasgado. não vou, penso. não vou. és tu a sair-me nu pela boca e do outro lado do mundo as luzes vão rasgar-me o peito, eu sei.
tu, é a palavra mais longa que conheço.





quinta-feira, 1 de setembro de 2016

filme de quinta-feira


letra para a batucada que é como quem diz gargalhada

a menina não sabia
não sabia
escrever
mas mesmo assim
escrevia
a menina sem saber.

hoje quero ser Quintana
passando por passarinho
na eternidade de Drummond
eu desfaço o meu próprio ninho.

eu quero ser, quero ser Neruda
entre a negação e o beijo
pedir a Pessoa um desejo
para a tua boca, ser surda.

eu não tenho forma nem arte
quero os olhos da Clarice
dizes que o silêncio faz parte
emudeço, sou cegueira
que a palavra derradeira
foi o meu amor que a disse.

a menina não sabia
escrever sem provocação
ainda assim
a menina
mesmo sem saber
escrevia
sem qualquer reflexão.
a vida vai fazer-te em cacos.
mas depois a vida vai-te pôr no carro, vidro aberto, a atravessar a ponte e vai pôr esta música a tocar.
e a gente vai continuar


oh baby, it's a very long story

nesta cadeira de madeira velha, senta-se o homem. na cadeira do lado está a sua solidão. é bonitinha, é uma solidão bem vestida e arranjada. é uma solidão que se pode levar para casa e apresentar à família. é um vazio perfeitamente respeitável.
há uns anos conheceu Celeste, mulher para ter aí um metro e setenta, cabelo curto castanho muito escuro e olhos redondos e pequeninos. Celeste vivia na bomba de gasolina, no vai e vem de homens de língua afiada e camisa aberta. nos seus vinte e poucos anos nunca tinha lido um livro mas percebia imenso de pássaros e pneus.
nesta cadeira velha, senta-se o homem.
sinta-se o homem.

prozac

acendeu a luz e só depois o cigarro
a mão pousada sobre o comando da
televisão, ligada num canal pornográfico.
fumou sem vaidade, nu e sujo encostado
ao único sofá da sala. no ecrã, duas mulheres
fingem nunca se ter visto.

talvez o desassossego ou talvez a campaínha
o carteiro ou a pessoa que limpa as escadas
do prédio. um sobressalto, um ruído que
não identificou imediatamente.
procurou, atrapalhado, o botão vermelho
do comando. desligou a televisão envergonhado
pela nudez dos outros.

nu, sentado no sofá com o cigarro a meio.
um movimento no exterior por identificar.
gostaria de fingir a sua própria morte mas
é preciso sair para para pagar o seguro do carro.
no dia em que se conheceram foi tudo diferente.
fumava vestido no parapeito da janela
quando a viu passar, naquele vestido mais azul
do que o céu mais azul que já se viu na cidade.

a primeira vez que os seus olhos se encostaram
fez prever que, a partir daquele momento, nada
voltaria a ser intacto. ela pediu-lhe um cigarro.
pediu um cigarro ao homem vestido que fumava
na janela do primeiro andar. podia ter-lho atirado
da janela, o cigarro caíria e talvez se rissem da
trapalhada. mas não. ele calçou-se, abriu a porta.
desceu as escadas e ninguém do lado de fora.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

das chaves

não escrever mais. é o que me apetece, nunca mais. não escrever mais. chegar aos sítios e simplesmente chegar aos sítios. não pegar no telemóvel e não escrever mais. não dizer mais nada. ninguém saber, ninguém.

nunca saberás o que vi nas tuas mãos
e não foram só dedos, e não foi só pele
mas eu nunca te vou dizer
porque se tu soubesses o que eu vi
nas tuas mãos, quando desviaste o olhar
e aquele carro azul travou para
deixar atravessar o senhor da camisola
cinzenta. ai se tu soubesses o que eu
vi nas tuas mãos. ninguém pode saber.


aeon (cadernos 2003-2005)


se pudesses sentir o sabor a sangue
nesta nuvem de asma
a certeira bala da insanidade
a minar-te as pontas dos dedos
quando chegas definitivamente
       leve ao último dia.
uma solidão que te emagrece a boca

enquanto eu me enveneno
         e tu te embebedas
da ausência da carne
nos olhos da vítima.

wonderful life

ana era a puta mais requisitada da cidade. famosa fodedora de banqueiros e homens de negócios. alguns indigentes também, por caridade.
tinha o olhar fundo de que os homens gostam e garganta até perder de vista.
ana disse que não a todos os pedidos de casamento e eles chegavam de todas as formas, em restaurantes de luxo ou bijuteria barata roubada nos chineses. ela dançava com os seus pés grandes e as mãos abertas ao esquecimento. um dia escreveu na porta do apartamento:

ana, a puta mais requisitada da cidade.

não se depila nem se depena
é um anjo a quem falta uma asa
se queres provar um jogo limpo
mais te vale comeres em casa.

ana nunca perdeu o sapato à saída do baile.

filme de terça-feira


terça-feira, 30 de agosto de 2016

a.mão.que.toca.os.lábios.que.tocam.a.noite.que.se.cala.sem.dizer.o.nome.desta.revolta.de.bocas.que.se.fecham.sem.existirem.na.equação.dos.espaços.por.preencher.a.vida.por.preencher.por.preencher.por.preencher.


José Saramago - Memorial do Convento (e cenas)

"a vida podia ser apenas estar sentado na erva, segurar um malmequer e não lhe arrancar as pétalas, por serem já sabidas as respostas, ou por serem estas de tão pouca importância, que descobri-las não valeria a vida duma flor"



ou eu a caber em alguma hora do teu dia.
ele disse: se fechares os olhos talvez este momento não acabe. o sol continuará a rasgar-te a pele como uma lâmina afiada na língua.


time to rest

em boa verdade aquilo nem foi bem uma história de amor. foi antes uma sucessão de atropelos. como quem corre para apanhar o autocarro para chegar a determinado lugar porque tem mesmo, mesmo que ser. olhando bem para as coisas, como efetivamente aconteceram, não se terão sequer olhado uma única vez. viam-se, naturalmente, mas aquele olhar profundo de quem quer provar a alma nunca aconteceu. o mais próximo que estiveram do amor foi uma certa altura, em que ela partiu a mão e era ele que lhe espremia as laranjas para o sumo matinal. de resto, podiam perfeitamente ser colegas de quarto de uma qualquer colónia de férias. aquele sorriso de quem se encontra a si próprio, por acaso, nas estradas da vida, nunca se viu nem na cara de um nem da do outro. embora sorrissem, logicamente, nas cenas mais engraçadas das séries de televisão. que viam, cada um do seu lado do sofá, como estava mentalmente definido sem qualquer contestação. em boa verdade, aquilo nem foi bem uma história. mas antes um acidente. ambos acidentalmente infelizes, anfitriões de uma casa que nunca foi sua. a dançar valsas e a colecionar fotografias de momentos que nunca aconteceram realmente. a trocar beijos como quem troca dinheiro na mercearia. contudo, a não saber desejar mais nada. a viver como se tivessem comprado sapatos de um número abaixo do seu, com esperança de acordar um dia e ser esse o número certo. na expectativa de viver sem encolher os dedos dos pés. o que, em boa verdade, nunca aconteceu.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

masks on

aí, sentado à mesa todos diriam que és uma pessoa normal. cheio de talheres, de copos, de pratos deliciosamente empilhados. o cabelo, ralo a começar a mostrar os sinais da idade. a boca perfeita, os lábios desenhados como frutos maduros. as mãos sobre a toalha branca. quem te ouve falar de vinhos julga-te um entendido, temperaturas, regiões, mais ou menos frutado e reserva especial. ouço-te falar de vinhos como te ouço falar de amor, tudo exactamente como está escrito nos livros de cièncias da natureza. eu que nunca sei qual é o meu copo ou o meu garfo, se ponha o guardanapo no colo ou delicadamente pousado ao lado do prato. eu que pouso os cotovelos na mesa e digo foda-se debaixo dos olhares atentos da censura. tu, monocórdico como as musas a agradecer as amabilidades, a falar de vinho como quem fala de amor. como quem não percebe nada nem de uma coisa nem da outra. eu, impaciente, à procura de um sítio onde se possa fumar. traga-me a conta por favor.

monday

irrita-me essa merda de seres uma pessoa cheia de qualidades. toda a gente repara que és uma pessoa diferente das outras. diferente para melhor, não é o diferente de coitadinho está sempre atrasado para alguma coisa. não é isso. é bonito. toda a gente repara como és bonito e como fazes montes de coisas.
como fazes bem montes de coisas. irrita-me tanto essa merda. que te olhem e te gastem porque toda a gente vê. toda a gente vê que nunca vai conhecer ninguém igual a ti. e eu sei que nunca vou conhecer ninguém igual a ti embora continue a procurar. só para provar a essa gente toda que não és assim tão especial, que não fazes assim as coisas tão bem. que, se calhar, até tens os teus falhanços. que não sabes, por exemplo, escrever bem com a mão esquerda ou que tropeças muitas vezes. que és ridículo quando estás com sono. provar a essa gente toda que ficam fascinados por coisinhas de nada, e que são uns fracos e parvos por conseguirem ver como és bonito, como és especial. irrita-me tanto essa merda de seres tão ponderado, e tão paciente e de ficares calado. e seres tão bonito. e saber que nunca vou conhecer ninguém igual a ti. irrita-me tanto.

sábado, 27 de agosto de 2016

um olhar
mais fundo
que os punhais
que diga
fica
é aqui a tua
casa.


herberto helder - PHOTOMATON & VOX


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

aula nº1

podias ensinar-me todos os truques
da distância e da ausência, como
se tornam invisíveis os espasmos
o corpo a descolar das feridas
como se, debaixo da pele, se falasse
outra língua.

explica-me como é amanhecer
e percorrer com os dedos o
peito frio, a janela aberta e a
cortina incrivelmente azul
a voar do lado de fora do prédio.

eu, que nasci no centro da tempestade
e não sei sequer dizer o teu nome
sem que as minha pupilas dilatem
e os músculos contraiam 
eu, que respiro o ar da treva
no caminho do paraíso.

diz-me como é.
ensina-me a incrível arte da indiferença.


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

come on baby

devias conhecer-me melhor
e saber que, a esta hora já os teus dedos
deveriam estar pousados sobre os meus
joelhos. para eu contar os teus dedos
um a um. e depois os braços e depois
todos os teus orgãos. eu quero saber se
sobreviveste inteiro a mais um dia. eu
quero ter a certeza que a chuva, que
a rotina, que a tristeza não roubou
qualquer pedaço de ti. e estás intacto.
perfeito como eu sonhei. eu quero ter
a certeza da tua imortalidade. já devias
ter pousado em mim todo o teu corpo.
já me devias conhecer melhor e saber
que nada te vai arrancar de mim. cinco
dedos em cada mão. cinco sentidos.
na tua boca escrever todas as palavras
proibidas.


Alberto Pimenta - Tijoleira


voice mail

ligava-te, dizias que estás bem, ou mal, assim assim, aos apalpões no escuro, no cimo da colina a caçar borboletas ou na lama a tentar sobreviver. qualquer coisa que te fizesse real, que me provasse que eu não te inventei. que não fui eu que criei o teu rosto com os teus olhos brilhantes e a tua boca ansiosa. que não fui eu que desenhei os teus ombros e o teu peito e que lá pus um coração a bater apressado.
ligava-te e dizias-me que estás a chegar e que talvez eu possa caber nos teus braços. e eu ficava a pensar que talvez coubesse de facto. e depois tu nunca chegavas mas eu havia de ficar sempre à espera. e pensaria, está só atrasado, deve ser o trânsito das estrelas, deve ser poeira cósmica. e eu ficava contente por te saber a caminho mesmo que nunca chegasses. só de dizer que vinhas era como se viesses mesmo.
ligava-te e perguntava-te porque estavas atrasado. e tu inventavas uma coisa bonita para justificar as horas. dizias que era para eu te abraçar com mais força quando te visse. e eu dizia que podia ser agora, porque já tinha o peito a rebentar. e que talvez não tivesse vida suficiente para esperar muito mais. e tu juravas que vinhas, e que estavas mesmo mesmo a chegar. e eu ficava contente outra vez. e eu ia ter a certeza que não és mais um dos meus fantasmas.


dos cíclicos regressos

vem sentar-te ao meu lado
agora que o tempo é esta maçã mordida
e desafiei todas as leis da física para
te olhar.

diz-me que o teu vazio é igual ao meu
mas que, boca a boca
poderemos ainda habitar alguns segredos
tão frágeis como ilhas de pó.

rasguei todos os lençóis, com as unhas
e atravessei noites e noites de medo
como um animal prestes a sucumbir
entre os dentes do predador.

devolvo-me à crueldade do inevitável
partida que estou ao meio, de me dobrar
em todas as direcções que te são opostas.
regresso ao medo que os teus olhos se fechem
e as tuas costas se ergam no encontro das mãos.





quarta-feira, 24 de agosto de 2016

p1

diz-me como é que eu vou guardar esse teu sorriso enorme, que eu nunca vi pousar nas minhas mãos.
eu, sem espaço. eu, pedaços. eu, quinquilharia que sai nas rifas da quermesse.
eu, sem espaço sequer para a minha loucura, a revirar os olhos à procura de um lugar para guardar o teu sorriso. igual ao daquela fotografia em que parece que te construiram a partir da boca. em que todo o teu corpo parece ter resvalado dos lábios.
o teu sorriso, o mesmo que eu pedia baixinho ao génio da lâmpada quando ele apareceu cá em casa para saber se eu tinha sobrevivido ao acidente.
onde é que o vou pôr? não cabe entre as folhas dos livros, nem no camiseiro junto aos lenços, não cabe debaixo do tapete na sala. tentei engoli-lo, mas não me passou da garganta. eu já chamei todos os especialistas, até o cardiologista diz não haver solução. ou me livro do teu sorriso ou tenho que arranjar um coração maior.


telegrama

ensina-me a não querer
os teus dedos perdidos no meu cabelo.
ou ensina-me a fechar todas as
portas, com a tua mão sobre a minha
pela última vez.


pensamentos em salas de espera

três horas sentada na cadeira vermelha
à espera do diagnóstico, da solução, de qualquer coisa.
alguns sorrisos de pena.
olho lá para fora, engraçado estar no sítio onde nos vimos
pela primeira vez.
à espera de uma coisa que não vem, três horas a ler
avisos, panfletos, a inventar a vida dos outros.

sinto-me uma criança a fazer coisas de adultos.
e não me apetece ser o que quer que seja.
amanhã, pego na bicicleta e vou brincar com
os meninos da minha rua.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

ora foda-se


brisa

se pudesses ser o sopro
e não o ferro
igual ao primeiro dia.



amnésia




eu não me lembro do dia em que te conheci
nem tu. talvez as paredes fossem ainda brancas
e todos os desejos estivessem por pedir.
ou eram só vazios a rodopiar nas mãos
entre um cigarro e outro, um beijo.
um sorriso que se imagina que vá durar
toda a vida. eu não me lembro. nunca falamos
a nesma língua. talvez estivesse a chover e tivesses apertado o casaco para te proteger o pescoço. eu não me lembro mas é como se doessem, as não lembranças a atravessar o corpo, rente à pele. deves ter pegado nos óculos para os limpar, ter apanhado o metro. talvez tenhas chegado atrasado a algum lugar nesse dia. tu não te lembras. a minha vida mudou num dia que eu não me lembro. devo ter posto o isqueiro dentro do maço de tabaco já a meio e ter-me esgueirado entre a chuva para apanhar o comboio. eu devo ter tomado vários cafés nesse dia sem saber que jamais seria a mesma. inocente pela última vez. sem saber se me atirarias flores ou pedras, a tentar decorar o teu nome. provavelmente a escrevê-lo na primeira linha de uma folha limpa do caderno. a escrever o teu nome e a seguir um ponto de interrogação. e depois as horas a passarem. a certeza que já me tinhas esquecido, que o esquecimento seria também a minha salvação. a olhar pela montra do café, um rapaz que deixou cair os livros, a solidão como uma ferida banal dentro de tudo o que nos habita. eu não me lembro se te fiz alguma pergunta. eu já sabia tudo sobre ti menos o teu nome, que escrevi no caderno e repeti enquanto descia a rua. eu queria dar-te todos os meus livros, as minhas inquietações, a roupa que trazia no corpo. não devo ter dito nada, não me lembro das palavras. o arrepio de quem pressente que nada será igual dali para a frente e o confunde com o frio, devia ser inverno. tu não te lembras. mas no meu peito abriu-se um buraco do tamanho do mundo, talvez por coincidência ou como aviso. eu não me lembro.


segunda-feira, 22 de agosto de 2016


as palavas não servem para nada.
o comboio, as flores, os dias longos
como alucinações. as palavras não valem nada.
as portas, os rios, não rio. a luz que bate no ecrã.
os braços curtos para o equilíbrio. o café, os cheiros.
as palavras cortam a pele como o silêncio.

as palavras são iguais ao silêncio. 
não servem para nada.


os pássaros dançam em desespero sobre as ondas.
não fosse o ruido confuso da rebentação, seria possível
ouvir as suas asas contra o vento.

quando foi a última vez que viste uma estrela cadente?
ou, simplesmente, a estante arrumada e os livros todos
à mesma distância entre si.
a última vez que não te doeu qualquer parte do corpo
e fumaste um cigarro sem culpa, e estendeste os pés
por cima da mesa e foste pescador, astronauta,
mágico ou vendedor de chapéus em paris?

a última vez que te despiste ao espelho
e percebeste que nada te regressará
e te deitaste no chão do quarto, nu
à espera que se soltasse o grito ou a gargalhada.
e nada se moveu, dentro ou fora de ti.

todas as ruas terão o teu nome
todas as canções saberão de ti

e essa é uma consequência de estares morto.



ou vice-versa. 


sábado, 20 de agosto de 2016

desço a rua, subo a rua
eu cumpro
todas as exigências
eu com

pleto
todas as rotinas

eu chego ao fim da rua
como quem chega ao fim do mundo
e nunca foi tão difícil abrir o sorriso

ainda assim, os lábios cortam a pele
para ser o que é suposto.

estou tão cansada que me vivas em esforço
que se for preciso eu própria pego na faca
e rasgo o meu peito para te arrancar de mim.


quinta-feira, 18 de agosto de 2016

malade

não consigo acordar. o tempo deixou escorrer para dentro do corpo o pó luminoso da angústia.
o peito arde como os lábios, há uma fissura quente entre a parede e a janela.

lá fora, as putas e os assassinos contam segredos ao ouvido da eternidade, nunca saberemos a sua língua. a mãe bem lhes disse que não seriam felizes se não falassem francês ou se não soubessem medir os passos das aranhas.

lá fora, os cães cegos de cio, os candeeiros enferrujados cintilam como estrelas de aço. dirás: nesta cidade habitam todos os teus fantasmas. eu vou responder que je ne sais pas parler français quanto mais aproximar a língua do éter.

passei o dia a segurar os olhos entre o polegar e o indicador mas não consigo acordar.

não sei a língua da paixão, quanto mais falar francês. não conheço o olhar das putas nem dos cães. e com assassinos só me cruzei uma vez por mero acaso na fila do supermercado.


fotograma VI

não voltes, agora que o sol nasce atrás das nuvens
e alguém cortou todas as hortênsias azuis
que atrapalhavam a passagem junto ao muro

não voltes

quererias tudo igual
o chão com alguns paralelos levantados
para tropeçarmos de amor
nas bebedeiras infindáveis dos corpos

os teus braços abraçar-me-iam
pela cintura, eu diria que morremos
para lá de todas as passagens e conceitos
tu dirias que estamos mais vivos que nunca

não voltes.

os meus olhos tombariam
de ternura.



caixa

diz-me o que nos cabe
hoje
no espaço entre os dedos
e os lábios
se é o incêndio ou o voo

se entre a pele
e o corte
existe ainda
uma palavra
por dizer

entre o teu corpo
e o meu corpo
a falta de ar
ou o universo
inteiro?



terça-feira, 16 de agosto de 2016

angelina (cadernos 2003-2005)

doem-me as mãos de pensar
a palavra acesa na tua boca,
a chaga na memória extinta
dos cadernos de capa preta

|meta|morfose|

doem-me os dedos
de pensar a morte
engolir-te os ombros brancos
cortar-te a pele-veneno

angelina do amor maior
num piano com asas de borboleta
um osso a arder-te no peito.

implode uma flor na tua boca
e
doem-me os braços de pensar a noite
diluir-se na lingua mais funda.

que a criança é uma mentira
o céu é uma mentira
envergonhada.

eu não perdi a cabeça
só não sei dormir enquanto
a chuva me rompe a pele
no absurdo de pensar-te.

angelina do amor maior.
e uma luz do ponto de vista da morte.
ainda te falta dizer que não brotará qualquer conforto desta guerra
breves serão os passos em redor do cinismo que te atrasa.

o teu corpo jamais te dará a trégua que tanto desejas
quando encostas a testa ao vidro da janela que parece tão larga
quanto a dor que nos tarda entre os dedos.

ainda te falta atravessar o medo e as flores secas da negação
curtos serão os braços para tocar o sol que alimentas com palavras
tão desnecessárias quanto a morte ou a sombra das árvores
em avenidas inteiras sem nome.

ainda me falta dizer-te que, enquanto olhavas atento as paredes
brancas, a vida me cortava ao meio sem hesitação
nas tuas mãos tudo o que sou se desfazia em pó.


eoteusilêncioétãotristecomoqualquerumdosmeusdias


e quando não existir uma ferida... a gente inventa.


segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Florbela Espanca - Poesia Completa


two minutes too late

agora que ninguém
me espera junto ao portão
e ouço as primeiras folhas secas
estalar debaixo das sandálias
sei que nunca virias realmente.

foi antes a ilusão e a sombra
entre os lábios gretados do cansaço
de uma vida que quiseste ao contrário.

sei que sorriria ao mostrar-te
as linhas da minha infância,
este banco onde aprendi palavras
tão compridas. esta rua por onde
corria em frente ao posto da guarda
como se temesse já a punição pelos
crimes que cometeria apenas anos depois.

as mãos sujas das amoras desfeitas
dentro da taça de plástico verde
havia de fazer-te sentir tudo isto
como se o tivesses vivido comigo.

a bicicleta encostada às oliveiras
e os pés descalços como se fossemos
eternos ilusionistas.

séculos antes das feridas
quando o sol nascia nos dias de feira
e entre o sono e a felicidade
caminhávamos sem medo.



adam e os perigosos silêncios (cadernos anteriores a 2003)

o mar é uma esferográfica inexplicável
e sobre a sua ausência pernoitas
os teus olhos são indecifráveis esponjas de luz
na rotação dos lírios em torno da noite

corpo - maçã vermelha que repousa nos impulsos da carne
dei-te um cigarro de mentol mas não pudeste entender
o alcance das unhas, encardidas, na pulsação das janelas

talvez lembres ainda uma pequena fonte, com peixes cor-de-laranja
quando na tua boca nasciam flores mortas,
ainda que negues o chilrear dos pássaros
hei-de ser sempre nevoeiro a dormir na tua sombra.


sábado, 13 de agosto de 2016

por um fio

estamos todos
sempre


sexta-feira, 12 de agosto de 2016

das linhas férreas

agora que dormes
e o quarto é apenas uma linha ténue de luz
que te cobre o peito, descubro no teu sono
todas as respostas

eu morrerei e tu morrerás (inevitavelmente, é certo. tão animais como outros quaisquer).
qual de nós morrerá primeiro, eu não consigo prever.
quando morrermos provavelmente já não nos falaremos há tantos anos quantos nos conhecemos hoje.
não saberás que morri nem saberei que morreste.
não teremos como chorar a morte um do outro.
não haverá qualquer esperança de fazer o luto do teu sorriso.
não poderei dizer que morreu o olhar mais sereno que conheci, nem que nunca mais tocarei a seda dos teus lábios, ou que o mel da tua voz jamais me dirá bom dia ou adeus ou qualquer outra palavra.
não sentirei o golpe de te saber enterrado num cemitério qualquer na tua cidade situada no fim do mundo.
sentir-me-ei em carne viva sempre que te pensar mas nunca será por pensar que morreste.
no dia em que morreres eu vou cumprir todas as rotinas, todas as indicações médicas se já me tiverem diagnosticado os piores males. vou fumar às escondidas, é certo, e ter uns óculos para ler os livros de sempre.
tu terás sempre a mesma idade, quando for a tua imagem no meu amanhecer.
eu nunca saberei que já não acenas aos velhos na rua nem te fascinas com as coisas simples na biblioteca, no estádio de futebol, no olhar das crianças.

esta é a mais cruel alegria.
saber que nunca me morrerás.


Leonard Cohen - Filhos da Neve


quinta-feira, 11 de agosto de 2016

ver o mundo através dos teus olhos

de nada serve
o que a nada serve


da vista sobre a fundação

nenhuma voz me vem dizer onde estás
neste preciso segundo em que as árvores
parecem hélices largadas no vento

talvez devesse só fechar os olhos
resistir à substância da saudade
ficar em silêncio com os fantasmas

inventei uma forma de olhar-te de longe
sem que me pressintas a habitar as tuas horas.

parece tão longo o tempo dos sorrisos
agora que esta história se tornou um enorme acaso
parecido com os que vês na televisão
entre os anúncios aos comprimidos
e aos seguros de vida e morte.

talvez devesse só agarrar-me com força
ao inverno que aí vem
agora que nenhuma voz me diz
onde estás, neste preciso momento
em que duas mulheres atravessam
a rua num passo rápido.

e ninguém sabe o que me falta.






consulta I

ele senta-se numa cadeira encostada junto à porta do consultório.
quase feliz por estar no psiquiatra. quase feliz por ter assumido a loucura. ter conduzido até ali devagar como se fosse a última vez sendo contudo a primeira. sorri quando lhe dizem que faz muito bem em procurar ajuda, fazes muito bem em procurar ajuda!
então senta-se ali, na cadeira azul e preta, desconfortável, nitidamente não concebida para loucos e nenhum pensamento o atravessa. chegou meia hora adiantado, como normal, todos os loucos gostam de se enlouquecer mais um bocadinho, seja a vaguear na cidade sem destino, seja na procura do encontro dos lábios, ou numa espera desnecessária.
sempre a esticar um bocadinho mais a loucura. talvez devesse ter trazido um livro, não é igual ler no telemóvel, pensa, não é igual. fica a faltar o jogo de sedução que se faz com as páginas, o peso do que já se leu na mão esquerda, não é igual.
estas paredes estão mal pintadas, pensa, que raio de psiquiatra tem umas paredes assim onde os loucos esperam. a menina atrás da secretária sorri sem motivo para todos os que entram, coitada. se não é louca deve estar lá perto. pede-lhe que preencha um formulário, empresta-lhe uma caneta, sempre sorridente. aguarde um bocadinho que o doutor deve estar a chegar.
pensa em que dia terá ficado louco, não tomou nota na agenda. não percebe efectivamente como isso aconteceu. mas a loucura é uma coisa que faz doer o corpo todo. a loucura é uma espécie de pneumonia da alma. vai dobrando os sentidos até que reste uma pedra a atravessar a garganta. é difícil ser louco e respirar ao mesmo tempo.
talvez se tivesse continuado a jogar à bola como o Marco e o André, nào tivesse chegado ali. andaria hoje de meias até aos joelhos e a bola vermelha debaixo do braço, tal como na infância. talvez as coisas tivessem sido mais fáceis se tivesse continuado a jogar à bola. ou se fosse advogado como o Tiago, sempre com pressa, sempre com papéis à volta. a acusar pessoas, a defender pessoas, a queixar-se do sistema judicial e a confessar que todas as estagiárias são uma putas. só querem foder por um contrato de trabalho no escritório mas ele lixa-as sempre, e orgulha-se disso. o Tiago não é louco, pensa, talvez por falta de tempo.
o doutor deve estar mesmo a chegar, diz a menina a sorrir atrás da secretária.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

fotograma V

ter-te
como se tem um livro pousado sobre as coxas
numa noite sem vento a meio da semana.

ler-te
como se as palavras nos fizessem percorrer
lentamente a essência de estar vivo.

ser tão só como em qualquer outro dia
do ano. como quem ama a personagem
de um livro que pousa sobre as coxas
numa noite sem vento a meio da semana.


eu existo, sem ti.
mas, sem ti,
a eternidade
é um lugar por
inventar.


terça-feira, 9 de agosto de 2016

os monólogos (cadernos anteriores a 2003)

monólogo I: do fundo aberto

e se ficamos cegos por ouvir guns 'n roses
numa tarde de domingo em que nos apetece morrer mais uma vez,
encostados a uma parede branca da qual não conhecemos um fim,
se ficarmos cegos (mesmo!) sem vontade de escrever declarações de amor
em post-it's exageradamente amarelos ou de gritar
os nomes de todos os corações ensaguentados que fomos perdendo pelas ruas,
não importa.

se me dizias que os meus olhos eram a fenda imensa do teu sangue e eu acreditava,
não vai doer nada saber.

que este amor nasceu do vómito.

o nascimento dessa vénus ilegítma já não arranca carne dos braços [da noite]
quando o vazio preenche o esquecimento e a loucura.

E tudo começou in the midle of fucking nowhere,
oh meu amor era um garden de uma palácio de vidros partidos onde tu gritavas:

-vamos morrer meu fucking love,
fumar um cigarro a meias antes de morrer meu fucking love.
depois cortávamos os pulsos um do outro
e fumávamos o vácuo intenso da floresta despida até aos ossos.

quando me arrancavas a lama da boca com os dentes
e me deixavas ser o primeiro inverno do teu corpo.

-nunca mais te empresto a alma nem te digo qual é o lado mais sujo da minha voz,
não te deixo mais cuspir-me na pele, não!
nunca mais, nem te permito contares segredos aos meus dedos.

era diferente amanhecer numa pensão barata de paris,
com as vozes das putas nas escadas de madeira podre em frente ao quarto
 tu dizias que as putas são assim.
era diferente ver a chuva através dos buracos na parede que davam para o passeio das
traseiras e fumar coca com a chávena de café na mão.

e ver a luz nascer-te nos ombros
(sim! eu via a luz nascer-te nos ombros, e nos olhos às vezes)

e depois?
depois?
recortar maços de tabaco até às 3 da tarde
e comprar smarties numa loja ranhosa do fim da rua.

it's a nice day to start again.

era diferente quando ouvíamos Prince no restaurante chinês
e líamos Al Berto nas confeitarias,
quando os táxis demoravam demasiado a chegar ao outro lado da cidade,
perto do mar onde me falavas da noite e da saliva.
era diferente quando mulheres de 40 anos se atiravam da ponte
e eu ficava sempre a ver-te partir.

um dia disseste que o amor são caixas vazias
-my fucking love... empty boxes. e nada.

nada.
nada.
nada.


sabes quantos rios moram agora nas ruas?
quantas cartas me morreram nos lábios?
todas.
que cada palavra transporta uma ausência suja.

.como os néones e os gritos.


- my love eu não posso ser nada para além de mim.
por muito que me rasgues as veias do coração.


monólogo II: dos navios dispersos

vês? é como se de repente ao descer uma qualquer rua do teu corpo
o medo me atropelasse e me despisse de todos os significados

nada é mais simples do que gostar de ti
é o teu cabelo que me pesa nos ombros
quando descemos devagar os 31 dias de janeiro,

pergunto-te se me queres ver atear este fogo no mais que te posso dar das minhas fraquezas,
não consigo derrotar este cigarro que me amarrota os dedos
e, às vezes, uma mulher sem asas pernoita no mais nojento de mim

não nos habitaremos nunca mais na pérfida insinuação dos corpos
as paredes brancas dos pulmões representam agora o que restou desta paixão.

a saliva tem o teu nome e nada se move em redor da boca
da casa restam os sacrifícios diários de apagar-te.
o café, os lírios, mentol nos dedos, um comboio na habituação das horas
não vês? as ruas a incendiar da tua memória, a tua nudez derrotada nos abismos.
eu vejo a luz esbatida de quem vai morrer fora do seu cadáver
os fragmentos da guerra matinal de emergir na fatidíca sensação de existir
além das palavras.

já não são árvores na coexistência dos sentidos, gritas mãe gritas raiva
e só as doenças te ascendem ao rosto.


monólogo III: das doenças nocturnas

"as pessoas não acordam os sonhos",
repetia enquanto o fim da rua me parecia cada vez mais longe.
Rua 5 de Outubro:
caminho devagar e o cigarro caiu-me antes da última passa,
disse foda-se e acendi outro,
é como se me doesse ainda a música de ontem
o dia parado entre os átomos
aproximámo-nos da janela pequena e acendi um l&m,
deste-me um beijo e eu sorri,
não gostas que a minha boca tenha o sabor do tabaco.
não disse nada mas lá fora chovia
não sei se notaste mas havia um baloiço
e as feridas já tinham cicatrizado nos meus braços.
há muito que estavam os carros parados
e as pessoas no café a conversar sobre futebol
eu pensava-te e repetia o teu nome como se estivesses longe,
estavas ali e as pessoas dançavam, o copo esteve toda a noite
no parapeito com cerveja até meio.
já te tinha perdido o rasto muito antes de te encontrar,
senti-o mas não disse
não disse nada e ela puxou-me para dançar
e ria-se como uma louca
eu olhava para ti e tu fumavas
passavas as mãos no cabelo às vezes
e eu sentia tudo a tremer dentro de mim.
era mais fácil esquecer-te agora se as fotografias
não me dissessem o teu rosto.
na rua 5 outubro há casas abandonadas e casotas sem cães.
tu disseste que ela era bonita e te amava
e eu não.
eu não disse nada.
eu mandei-te foder baixinho.
tu não ouviste.
os teus olhos traziam todo o sono e humidade do mundo,
lembro-me de ver o nascer do sol e tu à minha frente.
lembro-me de fugir dias depois.
lembro-me de nunca mais te ver.


monólogo IV: da fertilidade do vazio

dói-me a cabeça,
sei que tinha o teu nome escrito numa página deste livro
mas não me lembro.
esqueci o teu nome mas tinha previsto este dia.
acenderia todos os cigarros para despertar a memória
e nada me viria à cabeça, só o negro do asfalto
as linhas amarelas sem continuidade,
eu a perder-me mais e mais no sentimento da água.
no meu sonho tu abrias a porta e não sorrias
(nos meus sonhos tu nunca sorrias)
às vezes era eu que te abria a porta,
era eu que abandonava a casa
depois de abrir todas as janelas
era eu que fugia e nunca mais sabias de mim.


nunca me preocupei muito com o que pudesses sentir
sinceramente, pouco me importam as tuas angústias.
e quase consigo acreditar nisto quando repito muitas vezes.


hoje o trabalho correu bem, não doem as pálpebras, não tenho sono
as pessoas foram simpáticas comigo e agradeceram a competência
das palavras bonitas.
continuei sozinha depois das pessoas e das palavras,
não fui atropelada em nenhuma rua sem semáforos
mas tenho a cara desfeita e chamo uma ambulância
mas ninguém vem.

7 (cadernos de 2003-2005)

sabes

       debaixo do meu sono nasceu um mapa de uma cidade
       quase enorme
       tomávamos chá              branco          da índia?

sabes
       vi as aves arder no teu desconforto
       fotografaste a consumação dos dedos
       o suave ardor das espigas no espaço etéreo dos corpos

sei
       o meu silêncio mais antigo ao imaginar as tuas mãos acesas
       (no meu ombro) a terra inteira despida da confusão inicial.

da longa percepção dos rastilhos

és a brisa que me desalinha as pestanas
hoje, que me sinto capaz de cometer
todas as atrocidades para pousar
nos teus ombros os milagres
que me ascendem aos lábios

ainda que se erga a treva na ampla
dissonância das ruas, hoje
as tuas pupilas habitam a minha pele
como cães raivosos presos
atrás de portões de fogo e dor

vais encontrar forma de me ficar justo
ao corpo, amputar um a um todos
os meus membros e entre bocas rasgadas
pela crueldade do amor, far-me-ás
sucumbir na teia brilhante do sexo.



rescaldo

tinhas razão.

acordamos no meio do incêndio
a garganta arranhada e o sabor a sangue
na boca.
as janelas pejadas de pequenos pedaços
de cinza branca por dissolver

todas as serras arderam em redor da cidade
não teremos mais sombra nem cheiro
a eucalipto.
nenhum motivo para contemplar
a alegria e voo aflitivo dos pássaros

tinhas razão quando dizias
que nada nos restará
e eu acreditei, no momento
em que fechaste a porta
que isso era só mais uma frase
para me magoar

mas tinhas razão.
nada nos restará, nem este dia
que depressa escorregará
pelos olhos do infinito.

devia ter olhado fundo nos teus olhos
ter percebido que era verdade
quem sabe abraçar-te.
colocar-me no ínfimo espaço
entre o teu peito e a faca
e não deixar sair da tua boca
as palavras mais cruéis desse dia.

veremos tudo morrer antes de nós
teremos tudo a arder nas nossas mãos.

e nada te restará meu amor
só a razão.


sms

o que mais ama em ti?

a forma como a fazes acreditar
que podem existir
para lá de todas as dúvidas
de todos os medos
dentro da serenidade de um
arrepio que é vosso

o teu sorriso infantil
no meio da tempestade
a doçura com que destróis
tudo o que acreditava ser.


segunda-feira, 8 de agosto de 2016

artefactos de verão

raramente chega aqui o som dos sinos
mas hoje, por entre as nuvens cinzentas
pareceu-me ouvir-te chegar na melodia
cortante do vento

como se a tua mão, pousada na minha
pudesse dar trégua à agitação dos pulmões
a tua presença em torno do laranja vivo
de um sol que me morde as artérias

como se a tua boca, me falasse
dos universos que eu não sei
e a tua voz me arrancasse todas
as barreiras da inquietação

o teu sorriso, é uma ânsia
que morre longe.
mas raramente me chega o som
dos sinos e quem sabe, podias ser tu.


quando quem não me conhece me conhece tão bem


interseção

diz-me uma cor, diz-me um fruto
dá-me algo palpável que possa ser abraçado
na tepidez de um desejo impossível

o vento entorna o café sobre o muro
que escorre depois para o chão
doenças que alteram a rotina dos dias

dá-me uma palavra que me faça esquecer
o sal das noites sem dormir, as olheiras
de manhãs vividas no inferno.

treinei ao espelho mil coisas bonitas
para te dizer. no entanto quando chegares
todo o sangue vai confluir em direcção à garganta.

e eu vou ser só, silêncio.






dos dias vazios

confirmada a premonição
resta-me enrolar o corpo
sobre as feridas

contar as horas que demorarás
a passar de dor a memória.