quinta-feira, 30 de junho de 2016

03:59

quanto tempo demoramos a descascar uma laranja?
tanto quanto um corpo a atravessar o deserto
ou a mexer o café ou a despir as incertezas

como vês, falta-nos sempre um pequeno passo
para a hora certa
falta-nos sempre um último espasmo antes do desassossego

sabes dizer o meu nome?
saberei eu mover os lábios para pronunciar o teu?
quantas mais hortênsias brotarão deste dia?

como vês, falta-nos a última página de todos os livros.



dos telhados em chamas

o coração
como uma floresta a arder no pico do verão
um bicho inquieto na perseguição da água
ou uma mão que pousa suavemente no centro da mesa

talvez tenhas o destino escrito no peito
um mapa desenhado na candura dos lábios
ou é só o vento a ladear as paredes da casa

tu não queres um mundo igual todos os dias
nem um tempo que se arraste, ávido, pelas estações

o aqui, o agora
o verbo no passado mais que imperfeito.




contorcionista

é no silêncio que a alma
se contorce


quarta-feira, 29 de junho de 2016

quem sabe
uma janela aberta para a serra

quem sabe
um copo de vinho mão

quem sabe
uma distância sem medida

um nome que se pronuncia ininterruptamente
ou uma mão que repousa na espuma
ou ainda um vício que não adormece.

ou uma palavra.
só uma palavra maior que o mundo inteiro.



o amor é uma rua sem gente

uma noite em que não te deixasse dormir
para soltar as borboletas dentro do quarto
tirar o pó dos livros e dos vícios

uma noite em que não te despedisses
para me apunhalares o centro do peito
com todos os sonhos que já esquecemos

uma noite em que dissesses todas as palavas proibidas
palavras como fica, como pele, como casa, amor.



prece

há uma mulher que se senta naquele degrau todos os dias
abre um pequeno estojo de plástico barato
de onde tira um terço de pérolas falsas

quem passa pensará que está a rezar
que repetirá avé marias até ao ponto mais alto do sol
eu sei que não.

está a contar ausências.
dirá:
"-meu amor, bem me queres
meu amor, mal me queres"
sucessivamente até não existir mais nada.
e cada pérola será um alento ou uma desilusão

este é um hábito que repetirá todos os dias
até que o fio gasto se rompa

ficará sempre na dúvida
se o amor é uma benção ou um atropelo
talvez morra engasgada com pétalas de flores
ou com uma bala certeira no centro do coração.



terça-feira, 28 de junho de 2016

da voracidade dos pulsos

consegues dizer-me quantas vezes te perguntei as horas?
talvez te tenha já escapado a memória

foram milhões de vezes

nunca acertamos no tempo
ou a pergunta surge antes da hora
ou a resposta escrita fora do caderno

servimos o tempo sem que ele nos sirva
demasiado largo a deixar cair todas as ligações
ou demasiado justo no esmagamento do diafragma

não sei se nos chegaremos a tempo
se existirá uma rua que nos acolha à mesma hora
se continuaremos às voltas no silêncio das aves

apesar disso e sobretudo por isso
todos os dias vou perguntar-te
que horas são.







impressão digital

agora que é o sol a beijar-te a pele
e quase esqueces que tens o coração partido,
na página 143 do teu livro é anunciado um novo fim do mundo.

quanto tempo demoraste a chegar aqui?
ainda te lembras de arrepio da carne contra a carne
do brilho mais fundo nos teus olhos de menino
quando a pele se cobre de branco para ver nascer
todas as certezas

por muito que nos tenhamos habituado a morrer
nenhuma morte apagará a verdade com que os meus dedos
tocam os teus lábios.


fotograma III

há neste lugar um rio que se move devagar em direcção ao sul
uma terra que pisamos com os pés descalços
disponíveis para o amor e para a morte
como quem se entrega à doçura de uma manhã sem constelações

em torno dos lábios existe um claridade contínua
jogos que imitam o desejo da eternidade

sorrio ao ver-te descer os degraus do alpendre
és em mim, todos os lugares.



segunda-feira, 27 de junho de 2016

fotograma II

ela vai embora, faz as malas, segura as lágrimas.
fecha portas, duas voltas na fechadura.

um último momento para olhar pela janela
não voltará a ver pessoas sentadas naquele banco vermelho
no meio da praça, pássaros que pousam na cabeça de ninguém

um último momento para bater com o joelho no móvel da entrada
e arrepender-se pela centésima vez de o ter colocado ali.

ela vai embora, segura as lágrimas e os livros
poemas que ninguém escreveu sobre a nitidez das partidas.

fecha a porta, duas voltas na fechadura.
conta os degraus até à saída, deixa a chave na caixa do correio.

um último momento para olhar para as paredes
não voltará a ver anúncios de reuniões de condomínio.

sai à rua, o ar quente de um verão que se prevê infernal
deixa no contentor os livros e segura as lágrimas.

olha os vizinhos que cumprimenta com um sorriso
morrerão todos, alguns estão já mortos.

um último momento para um café precisamente
na mesa mais à esquerda da esplanada
onde desenhou tantas angústias e pequenas alegrias
capazes de fazer chover.

café curto, chávena fria, adoçante
bom dia menina, hoje vai esta calor.
segura as lágrimas.

vão nascer novas flores encostadas aos muros
ela não as verá, agora que caminha devagar até ao fundo da rua.








existirão dias em que a ausência criará mais ausência

às vezes são os demónios que nos olham nos olhos.





domingo, 26 de junho de 2016

tudo menos o silêncio.
no silêncio eu só sei ser fuga.



dos vícios

qual é o nome deste animal
que nos devora por dentro?

para que nos servem os dias
as chávenas alinhadas na brancura das toalhas
os copos a brilhar na solidão dos restaurantes

diz-me quem alimenta este animal
cujos dentes se cravam nas nossas veias

quem o alimenta?

são os meus pulsos na plenitude das paredes
olhos que não vi numa cidade que não conheço
a terrível ternura destes ombros em que me apoio
para ver nascer o dia.




sexta-feira, 24 de junho de 2016

fotograma I

da janela vê-se o mar
as cortinas azuis balançam devagar
na brisa fria que invade o quarto

o casaco dobrado, pousado na cadeira branca
o tabaco na escrivaninha
na rádio está a dar morphine.

da janela vê-se o mar.

passei a noite a contar os teus passos
exatamente três passos da porta à cama
um passo largo até à janela.

não vieste.
da janela vê-se o mar.







terça-feira, 21 de junho de 2016

lápide

no fim
só os meus pés descalços
alegremente pendurados
na varanda de um qualquer apartamento na cidade.

vista para o trânsito numa noite fria.
prometeste que morreria e aqui estou eu
mais morta do que nunca
mas com os pés descalços
como gostaria de ter vivido.

acendo um cigarro e vejo-o arder no vento.
e é só isto, o fim.




Dos Deolinda, a única.



Não apetecem mais palavras.


segunda-feira, 20 de junho de 2016

das invariáveis

o que nos restará para além da euforia deste dia?

as canetas delicadamente arrumadas
quando já não souber escrever

ou os frutos intactos na mesa de jantar
talvez a planta morta na janela da sala
uma música que reconheço por não a teres cantado.

diz-me, o que vai sobrar de nós?

continuaremos a ser de carne e osso
e músculo e ferida
seremos ainda compostos de tempestade

terei um cão para passear nos dias cinzentos
ou irei apenas ver passar carros na avenida
para não te perder.


dizer-te que todos os meus poros se abrem
quando é a tua voz a escrever mistérios na minha pele

e que

desde que te conheci
passei a odiar o tempo.



domingo, 19 de junho de 2016

relato

não apanhei o sol.

não conheço o significado das coisas mais simples
a flor que morre de repente na berma da estrada
ou a luz que se acende no fundo da rua
ou ainda a palavra escrita na última página do livro.

percorrer a tua mente
é como rasgar a carne no alcatrão dos dias.

tenho as mãos em carne viva.
por tentar prender-te entre os dedos
a inflamação alastrou a todo o corpo


não apanhei o sol
e agora, sou inteira a gritar por ti.




about last night

é no teu corpo que eu me encontro.
repetidamente



sábado, 18 de junho de 2016

chegamos sempre tarde um ao outro.
chegamos sempre.





recuperação de um texto antigo a propósito da gallow dance

mais perto dos dedos, o sonambulismo
a fera térrea no limite da doença
os pés pequeninos das crianças
e o lixo - o mesmo universo descalço -
as amoras na boca do morto sorriem
os teus segredos mais facéis.

não vais receber esta carta
porque a engoli
e agora tenho o coração a bater
nas paredes da garganta.


comentário

Por ser uma trapalhona, apaguei inadvertidamente um comentário de um anónimo que continha um link do youtube.
Ao caro anónimo, peço que repita a dose para me matar a curiosidade.

Gracias.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

inversão de marcha

não mais falaremos sobre a distância
esse instrumento que inventamos
para nos proteger do gelo e da morte

não mais falaremos de lágrimas
embora continuemos a chorar amiúde
quando os dedos se entrelaçam sobre os lençóis

tornar-nos-emos quase imunes à paixão
mas se, subitamente, nos sussurrarem ao ouvido
uma qualquer trivialidade
deixaremos cair todas as nossas armas

toda a vida não chegará para juntar os cacos
não vamos ler todos os livros
nem tocar com os dedos os lábios da chuva
por vergonha, por medo

sentirás os dias como um choque em cadeia
uma dor que sobe lentamente
das mãos aos ombros
darás por ti a saborear o café amargo
como que treinado para o vazio.





da recorrência

postais de Itália
Florença, Milão e Roma
livros que falam do amor e da guerra
um cigarro acesso, pousado na beira da mesa

na rua, as mulheres vendem meias
e os homens vendem sonhos

ouvem-se as portas dos cafés a abrir
uma brisa repentina faz voar o pacote de açúcar
vazio...

pudesse eu pousar agora a minha mão sobre a tua
e viajaríamos até ao outro lado do mundo
para engolir o pôr do sol.


quinta-feira, 16 de junho de 2016

canção para dançar em silêncio

esta é a história mais triste do mundo:

amavam-se.
ela muda e ele gago.


canção de amor


esta rua tem o nome de
um amor mais velho do que tu e eu
tem as mãos abertas e largas
e o beijo do último amante

esta luz que parece deslizar
dos prédios altos é a mais bonita monotonia
são pés cansados que pousam em cadeiras de esplanada

a cidade foi engolida por um incêndio
de gente que sorri ao ver passar os autocarros
de cabelos que esvoaçam na simetria dos dias

corro, por entre a multidão.
sei que estás algures neste caminho

paro e rodopio
é de gelo o ar que me atravessa a garganta
e eu sei que estás algures neste caminho

esta rua tem o nome
de uma canção que me cantaste ao ouvido
tem os olhos terrivelmente abertos
e o beijo do último amante

se me perguntam desnorteados
para que lado é o rio
direi que só conheço o caminho até ti
porque sei que estás algures neste caminho

e esta rua tem o nome
de uma noite por acontecer
tem os vícios de um velho
e os desejos de uma criança por nascer.





quarta-feira, 15 de junho de 2016

correr o mundo


da dissecação do desejo

liga-me

diz-me que da próxima vez
que nascermos não vamos ter medo

que atravessarei metade do mundo
para me aninhar no teu peito

liga-me

tu ensinas-me a dançar na chuva
e eu acendo o maior sol para os teus olhos
pousarem

diz-me

vais transpor todas as minhas cicatrizes
e enrolar os teus pés nos meus
para confundir os átomos

as avenidas existirão
apenas para os nossos cansaços

o teu cheiro vai habitar as casas
e os comboios não mais passarão
entre nós.

liga-me

ensina-me a ser tu.
promete-me que
da próxima vez que nascermos
o quotidiano vai ser só uma palavra
que aprendemos num livro.


terça-feira, 14 de junho de 2016

today? forever


Omem

Menina, não se ajoelhe no chão
que rasga as meias

não falte ao respeito aos mais velhos
não jogue à bola que esfola os sapatos

não diga asneiras, menina
não se ria muito alto, mas ria-se menina

não seja antipática. seja dada menina mas não oferecida

comporte-se como uma senhora

faça a vénia menina, saiba fazer um assado
seja fada do lar menina.

se não for bom, faça de conta
se não gostar, guarde segredo.

critique apenas outras meninas, puxe o vestido para baixo.

seja ambiciosa menina, trabalhe das 9 às 18 mas às 16 vá buscar os meninos à escola

aguente um bocadinho, apanhe um bocadinho
não grite, controle-se menina.

pode ser tudo o que quiser menina

mas deus a livre de ser feliz.

artifícios

viras-me as costas
viro-te as costas
vivemos assim, de costas voltadas

mas sinto o calor da tua pele na minha pele
tenho o suor das tuas costas a escorrer nas minhas costas

se moves o pescoço, são as minhas veias que dilatam
e se um pássaro pousa lentamente nos teus lábios
poderás sentir ainda o meu coração latejar


Serenata


da explicação da ausência

não voltaremos a falar sobre os pássaros
na tenacidade dos dias por vir

agora, é apenas o linho cuidadosamente arrumado
dentro de gavetas envernizadas pela intempérie

sobrarão apenas estas fotografias
em que o teu sorriso ocupa toda a casa
em que os teus lábios, os teus dentes, a tua boca
destroem a lucidez do vazio

lá fora, a água correrá límpida nas bermas
junto ao mar quase conseguirei escutar-te sussurrar
o meu nome

talvez estejas ainda debruçado num qualquer parapeito
numa rua com centenas de casas pintadas de branco
todas irremediavelmente iguais
vais dizer-me bom dia e eu vou fingir não ouvir

apressarei o passo e ao dobrar a esquina serei pó.
na tua pele, apenas a memória vaga de uma brisa quente a beijar-te o ombro naquela manhã.

segunda-feira, 13 de junho de 2016


13 de junho
chove.

este dia já aconteceu.
tu chegas, eu corro
baixo o olhar e talvez tropece
talvez me inventes.

passou por mim um homem a fugir da chuva
não lhe vi o rosto mas reconheci-lhe a angústia
vai morrer hoje mas não sabe
sente-se morto há demasiado tempo
foge da vida como foge da chuva
está cego mas ainda assim pára,
para deixar passar o comboio.

como se algum comboio pudesse matar o que já está morto.

decerto se apagaria essa sensação de suicídio lento
nunca mais pediria a deus qualquer sinal
nunca mais compraria tabaco, ali, onde está agora.
o olhar seria sempre o mais acertado
e não ficaria nervoso quando ela o fitasse.

está morto mas não sabe
e agarra-se à incerteza com tal desejo
que poderiamos acreditar estar mais vivo que nunca.

não está.
mas se ela chega, toda a avenida se ilumina
diz-lhe bom dia, ela não responde
acende um cigarro, está com pressa
e chove.


domingo, 12 de junho de 2016

"Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo" Joaquim Pessoa

não ponhas flores no meu cabelo
põe os teus dedos, os mesmos que usas
para escalar os muros que me cercam

há muito tempo que nada de puro me atravessa
mas a tua boca, fresca como as primeiras chuvas,
faz-me sentir como se tocasse o mar pela primeira vez.

nada é mais puro do que sentir a matéria pela primeira vez
nada é mais tangível do que o fogo que se acende quando nos olhamos

talvez estejas muito longe das permanências
ou eu esteja demasiado perto das inevitabilidades

mas, imaginei a minha morte mil vezes.


E todas elas começavam contigo a partir.


sábado, 11 de junho de 2016

Paga-me um café.

Preciso saber onde me começas
Onde eu te acabo
Se nos cabem as palavras entre os lábios
Se és tu que me mordes o pensamento

Se é entre os teus dentes a minha casa.

São os teus dedos que me contornam o ventre
Como um animal faminto.
Estou cansada, deixei-me cair no teu peito.

Paga-me um café
Fala-me desta doença, desta imperfeição desmedida.

Conheço tão bem as tuas armas.