domingo, 31 de julho de 2016

da salvação

são tão longos os teus braços
e tão lassos os meus olhos
que quase acreditei que me
morrerias naquela noite.


espera, não.


são tão largos os teus lábios
desenhados como estradas de fogo
sobre a cicuta dos dias
que quase seria possível
viver entre eles
e ascender ao céu da
tua boca.

infinitamente


das rotas

de tanto fugir
o caminho tornou-se infinito
e agora, as aves pousam
na fragilidade das cordas
não sei se por ternura
ou por medo de voar.





we all are dancers in the dark


sábado, 30 de julho de 2016

Al Berto - Lunário

"O tempo de sedução terminou. Terás de me tocar, terás de
trocar o tacto dos olhos pelo tacto dos dedos. Apenas persistirá o
jogo, a cumplicidade, e uma ténue vibração do corpo que se
perdeu contra o meu corpo.

Por isso me ergo daqui e atravesso estas imagens coladas às
paredes, e ao atravessá-las descubro que estou perdido, e
condenado também a perder-te."


Jorge de Sousa Braga - Balas de Pólen


dia 1

um dia que te faça ficar.

a loucura entre os dedos
que apertas contra a lucidez.

um só dia que te faça ficar.
e eu serei esta chuva a cair.

(dentro do teu corpo)


do que basta

de que servem as facas afiadas
rentes à pulsação da carne
se o corpo se enrola velozmente
em torno dos dias imaginados.

se és luz ou sombra, antecipação.

de que me serves, encostado aos lábios
a respirar mil razões para me transpor.
se o magnetismo da tua boca
é um lugar de incêndios e rumores.

sabes onde vivem os meus fantasmas.
como, à noite, a crueldade dos dedos
me faz percorrer cidades, sem medo.

serve-me o teu nome
cravado nos dentes da excitação.




sexta-feira, 29 de julho de 2016

deixe a sua mensagem após o sinal

a minha paz
é a inquietação

por dentro eu só.

contradição.


evolution baby

todas as revoluções estão por fazer.
olho-te e é como se uma nova guerra
começasse, todos os dias.

olho-te e corro a fugir para as trincheiras
com as botas desapertadas, tropeço
e arrasto-me coberta de terra para me esconder.

encontras-me sempre, todos os dias.
e quando me olhas nos olhos 
eu corro, já descalça, para a frente de batalha
com o peito aberto às balas.

todas as músicas estão por cantar.
e são pássaros nus que nos enchem as mãos
de devaneios e estradas que não percorremos.

demoramos tanto tempo a perceber
que esta guerra só tem um lado
que é o teu, que é o meu, que é a revolução.

que talvez os pássaros cantem nus
nas estradas das nossas mãos.


qualquer coisa

se tivesse sido importante, tinhas escrito qualquer coisa
no azul do céu desse dia. qualquer coisa

chega-me uma esferográfica.
os teus olhos rasgam todos os meus sentidos
dá-me um guardanapo
dóis-me tanto que até tenho o coração saliente.

qualquer coisa.
o facto é que não escreveste.
e eu não me esqueço.


cenas para a madalena chorar


quinta-feira, 28 de julho de 2016

fotograma IV

gostava tanto de saber falar italiano
e tocar piano, ter um piano no meio da sala

e tocar a moonlight sonata enquanto abres
a porta e te vais para sempre.
eu a fingir não me importar, a fechar os olhos
nas teclas do piano, no meio da sala.

havias de dizer que te abandonei
que enquanto saías choraste e eu continuei a tocar.
e eu tocaria até morrer de fome ao piano.

cada um com o seu abandono,
eu com o meu piano e tu com as tuas lágrimas.
a música sempre a tocar e tu a descer as escadas
eu a ouvir os teus passos e tu a minha música

cada um com o seu abandono.
tu a abrires a porta e eu a abrir os dedos.
tu a desceres a rua com a tua dor nos joelhos
eu a subir as notas com a minha dor de coração.

eu a morrer de fome ao piano.
a música sempre a tocar.
cada um com o seu abandono.


preguiça

havemos de ficar aqui
à espera que a vida nos trate de tudo.
daqueles impressos há semanas
pousados na mesa, para preencher.
da acidez ocasional  que nos
percorre o esófago.

eventualmente tudo se resolverá.
a vida faz-nos as malinhas
e talvez nos recambie para
um sítio bem longe daqui.

assim, tudo resolvido.
os outros que se chateiem
que construam coisas
que façam acontecer
que eu quero é ver o mar.
talvez a vida mo traga aqui.


Miguel Esteves Cardoso - O Amor É Fodido

(...)"O amor é fodido. Nunca sabemos se estamos a dar ou a receber. Os teus
poemas também eram ricos. Transcrevo um de memória, para gáudio de quem
nos estiver a ler: « A quem, a quem hei-de-me dar; eu que já soube o que dava e
agora não sei mais nada? A quem hei-de dar a verdade que guardo tão mal, tal é
o mal que ele me faz: dar-me vida e nada mais» .
Escrevemos coisas parvas, perguntas já previamente concebidas para obter
respostas rápidas. Até parece que estamos a falar. Num dos nossos quartos.
« O teu mal» , dizias tu com frequência, sempre como se o mal fosse só
aquele e não contassem os milhares já indentificados ou por identificar, « é só
quereres quem não te quer e amares só quem for capaz de amar-te até à morte
sem nunca te ter…» .
De que nos serviu falar? De que nos serve escrever? Dizem-nos, quando
somos pequenos, que as mulheres gostam. Mas tu nunca gostaste. « A quantas
não terás já tu escrito?»
E eu respondia-te sinceramente: a mais de cem."(...)
odeio-te porque me vês.
porque me és, maior
do que todos os medos.







prólogo

ainda nem nascemos
e os dias já são tão estreitos
como lâminas que nos apertam
a cabeça contra os joelhos.

o sangue escorre e suja
o tapete, ensopado
só faltava mesmo a merda
do tapete para limpar.

como se não bastasse
digerir a dor, relacionar
todos os acontecimentos
com inevitabilidades.

como se não bastasse
o jantar, pôr a mesa
arrumar a mesa
agora a merda do tapete
todo sujo para limpar.

nenhum nome para as psicoses
bate três vezes com o pulso
no teu livro favorito.
deixa-te invadir pelas lâminas
afiadas, isso...

sente os ossos estalar,
estamos quase a chegar
só mais duas estações
outono, inverno, não!!
primavera, quando nascem
as primeiras flores
quando os pássaros
cantam os arrepios.

limpa o tapete, caralho.


quarta-feira, 27 de julho de 2016

da história dos livros

disseste, toma porque te amo.
o amor durou mais 3 meses,
o livro continua na estante.
podes não acreditar mas
nenhuma palavra se apagou.

lembra-me, na próxima vida,
de encomendar o amor à Bertrand.


self portrait I

tinhas mesmo que inventar qualquer merda para te foder o juízo não era minha menina? não te bastou faltar às aulas todo o 10º ano e a prof de alemão ainda te passar à rasquinha, grande consideração que eles tinham por ti minha burra. passar de ano num ano em que nem pões os pés na escola é provavelmente o ponto alto da tua vida.
já lá vai, foi há quê? 15 anos yaaa, 15 anos. deves ter mesmo uma vida de merda para ainda te lembrares disso. vai mas é fotografar copos de cerveja e fingir que és feliz que assim dás menos trabalho.
às vezes pergunto-me se o Rui terá conseguido comer todas as gajas que queria, tinha um ar tão desajeitado e ainda por cima imitava gaivotas quando estava bêbado. deve estar todo pipi agora a provar vinhos em
quintas famosas, rodeado das gajas que quer e que não quer.
tipo eu, mas sem o pipi, sem os vinhos, sem as quintas famosas, sem as gajas. só ali.

da libertação dos fantasmas

sussurra-me todos os verbos
como se ainda fosse possível
sobreviver ao movimento dos astros

os dias como pássaros que não vi
a atravessar ciprestes na recorrência
da negação dos sentimentos mais fundos.

perdoa-me se não me deixei cair
na lentidão das veias por romper.

eu sei que nunca te chego a tempo.
serias infinito se te medisse em
coisas por acontecer.

das folhas rasgadas

se eu morrer esta noite
sabe que foste tu
quem acendeu estrelas
na inclinação dos telhados

quem riscou o fósforo
para o meu último cigarro.
guarda nas mãos essa sombra
que eu não te dei.

se amanhã não me ouvires chegar
aprende a gritar o meu nome
como eu escrevi o teu repetidamente
nos muros das cidades mais distantes.

sabe que foste tu quem derramou
seiva sobre as feridas, e que eu
vou estar onde estiver a tua mão
pousada sobre os livros.


terça-feira, 26 de julho de 2016

gosto tanto de gente com gente dentro



todas as canções deste gajo parecem conversas de banco de jardim do manicómio.
e há lugar mais bem frequentado?

papillon

cobrem-se os corpos de musgo
ao tentar evitar a noite.
as asas na tepidez das feridas
alcançam a sensação de abismo.

terás que inventar outra algazarra
para entorpecer os pensamentos mais velozes.
palavras escritas a medo debaixo das unhas.
arrancas da pele a recorrência dos vícios

é preciso prender os lábios entre os lábios
e devolver à boca o silêncio e a incerteza.
esconder as armas nos bolsos rasgados
da alienação. tomar comprimidos para o coração.

talvez possas guardar ainda um arrepio
uma pequena memória de um dia por acontecer
a saliva e os nós dos dedos sem contraindicações
o amargo, o agravo, a alarvidade da paixão.


segunda-feira, 25 de julho de 2016

o que devora. o que devora. o que devora de dentro para fora.


Orlando Neves - Nocturnidade


um par de asas e eu era céu


das confluências

quantos gritos mais terei que conter
até que amanheça e as aves me atravessem
as têmporas?

não quero ler os jornais.
apenas beber este café
na imbecilidade de mais um dia.
eu sei que o mundo vai mal
que há uma névoa acesa nos meus olhos
mesmo quando não quero saber as notícias.

é a crueldade dos homens que me traz
o inferno à boca.
que me faz cair na espiral inevitável
do tempo.

e olho os relógios para não ver as feridas.
acendo cigarros para acelerar o fim.
eu sei
todos os ossos do meu corpo são fuga
e por muito que cerre as pálpebras
eu vejo
a prontidão das falésias a atravessar
o corpo.

se ao menos existisses fora de mim
e viesses povoar a inércia desta cidade
que já não tem dentes, nem mãos
para o abraço.

se ao menos os teus olhos
viessem acender a paixão das ruas
ou apenas pousar palavras nos becos
mais improváveis.

qualquer coisa que nos devolva a vida.
que nos salve da intermitência das horas.



domingo, 24 de julho de 2016

do baú - escrito algures entre 2003 e 2005

moro no número setenta e sete
e enquanto lia a tua morte no jornal
a vizinha limava as unhas na varanda
como se a tua morte não fosse importante.

dei-lhe um tiro na cabeça
como prova de amor.
atravesso ruas como se a cidade estivesse, subitamente, vazia
atrás de mim alguém segue num passo mais lento
a balbuciar uma música qualquer que não conheço
as minhas pernas tremem, desvio o pensamento.

acendo um cigarro que fumo rapidamente
como se a inspiração do veneno me fizesse 
esquecer que estarás ali, duas ruas depois.

chego, peço um café, que pago fazendo uma piada
qualquer sobre o açucar e a colher
o rapaz atrás do balcão ri-se.

do balcão à mesa as mãos tremem.
olho para cima, para baixo, para os lados.
não sei qual é a postura certa da inquietação.
o cinzeiro é uma lata de atum forrada num tecido
barato cor-de-rosa. acendo outro cigarro
que não me lembro de ter fumado.

pego no caderno, ridículo, da cor do cinzeiro
faço um gatafunho qualquer. 
passaram 10 minutos ou a eternidade. 
não sei se é uma borboleta que me pousa na mão
ou uma faca que me atravessa a garganta.

começo a pensar na injustiça que cometemos.
como poderia este momento ser uma repetição
em vez de uma batalha.
levanto-me. dóis-me tanto.


sustenido

dá-me o teu colo
diz-me o que há para além da montanha
que mundo novo descobriste hoje.
conta-me os teus cansaços.

quantos minutos precisaste para acordar
o que te fez brilhar os olhos
qual de nós se perdeu no fervor da cidade.
dá-me o teu colo.

ensina-me o que sabes sobre os acidentes
como posso caminhar descalça sobre as pedras
diz-me como te sobreviver.

já não sei o caminho de volta ao meu corpo
não me consigo habitar tal é o eco da tua voz
em todas as minhas ruas.



até quando?

a ana tem duas doenças degenerativas.
uma que lhe vai roubando os movimentos, lentamente como um animal selvagem sem fome.
soube talvez há uns 12 anos, num diagnóstico fatal.

a outra chama-se antónio. dessa doença padece há mais de 30 anos.
mas agora que o antónio não consegue lidar com
a frustração de uma alma que não ama, vinga-se num corpo que não consegue responder.

a ana precisa de ajuda para as coisas mais simples
como descer as escadas do patamar e caminhar
até ao café atrás de casa. a ana tem sempre um sorriso para oferecer a quem passa.
a ana deseja tudo de bom a toda a gente.

o antónio bate na ana. porque ela não desistiu de si.
o antónio grita com a ana porque ela não quer
morrer antes do seu corpo.

a ana não sabe que pode ser salva. a ana não sabe.
por muito que as queixas se acumulem nas entidades competentes, a ana não sabe.
ontem foi à beira do mar e quando me cruzei com ela disse-me que viu pessoas muito felizes e que chorou muito porque adorava poder ir à praia.

a ana já não chora por querer ser feliz.
a ana limita-se a gerir a infelicidade.
a ana limita-se a implorar que antónio pare, nunca que não comece.

gostava tanto que a ana fosse à praia.
gostava tanto que o antónio tivesse lido neruda.




sexta-feira, 22 de julho de 2016

do infinito

és luz.
a nítida sensação de caminho certo
como se dentro de ti caminhasse o destino
lento e previsível, sem qualquer esforço.

ainda que esta avenida esteja inundada de gente
e o desconforto das máscaras nos trave
és luz
e todos os teus movimentos me atravessam
golpeando o que há muito esqueci.

tens a serenidade dos jardins ao sábado de manhã
e a força das mensagens escondidas nos poemas mais simples
limpas os óculos, dizes que está vento, que está calor
e essas são as palavras mais bonitas que ouvi.

és claridade,
o rio que se revolta, que se entorpece e que se levanta
que avança lento e forte ao encontro dos lábios.





quinta-feira, 21 de julho de 2016

da textura do desejo

talvez precisemos de reescrever os silêncios,
a tristeza do sol a cair atrás das casas
ou o voo perturbado dos pardais no meio da cidade

agora que a metafísica é um lugar sem gente
e o corpo treme ao percorrer as mesmas ruas
talvez precisemos de criar uma divisão sem história

dás-me a mão e não me lembro dos dias até aqui
o tempo atravessa-me o ventre como uma nova ferida
tudo neste momento são lugares que devias conhecer

ruas que atravessas sem medo
e um cansaço pelo qual não te deixas vencer.
talvez precisemos de reinventar o sorriso
criar novas palavras para habitar os arrependimentos.


quarta-feira, 20 de julho de 2016

boémia

já não temos Istambul, meu amor
as ruas de Paris estão cobertas de sangue
já não veremos Damasco ao pôr do sol
e mesmo Londres escapa-nos entre os dedos

mas para que serviam todos esses lugares
se quando os tinha, os teus olhos não existiam
e o que me atrevessava o peito era só o vento quente de julho

já não temos nada de puro, meu amor
nem janelas abertas sem medo de doenças
nem coragem para correr esta avenida
ou mesmo a fragilidade de quem não consegue pronunciar todas as palavras.

restam-nos os atrasos do metro
os prédios em construção numa dor que não sentimos ainda
bilhetes feitos de pó e lábios que se entreabrem às possibilidades

e é tanto.


terça-feira, 19 de julho de 2016

do voo insaciável

bastam-me os teus olhos quando nada me chega
e o vazio é um lobo que me morde as alucinações.

se ao menos houvesse uma canção para descrever
a poeira cuidadosamente alinhada nos muros
ou as linhas amarelas que proíbem o estacionamento
a velocidade com que se constroem as palpitações

dou a mão a qualquer desconhecido
que me diga em que lugar do meu corpo
tu permaneces.

bastam os teus olhos para saber que
por um triz não me salvaste a vida.





"he only just discovered the sun on the last day"

hoje pode ser o último dia
em que esta árvore  se deixa cair
sobre o muro pintado de amarelo.
não sabemos

por agora as folhas dançam
nesta cidade que ainda não acordou
e uma gaivota enlouquecida
parece gritar todos os nomes

as luzes na rua já se apagaram
e começa-se a ouvir ao fundo
a rotação dos motores dos autocarros
no fim da avenida, o mar prepara a revolta.

esforço-me por guardar todas as memórias
talvez devesse ter escrito um diário
cheio de enigmas, doenças e constelaçòes.
talvez devesse.

hoje pode ser o último dia
a última vez que falamos a mesma língua
a última vez que abrando para ver nascer o sol.



café curto

talvez não volte a escrever
fui engolida por todas as palavras.


segunda-feira, 18 de julho de 2016

are you waiting for the blade?

- sabes quando pensas, agora é o momento certo para morrer. os pés sujos de terra, os ouvidos a estourar de emoção, de comoção... sabes?

- já não te apetecia morrer há algum tempo.

- é verdade, há duas formas de morrer. miserável, embebido em dor, o cheiro a éter nos corredores, os gajos todos a correr sabe-se lá pra quê. ou assim, com os pés na terra, o vestido sujo de relva e cerveja, de braços abertos a gritar a tua música favorita. os gajos pensam que te passaste da cabeça e deixam-te só a morrer. quando descobrem que morreste já estás gelada, nada a fazer.

- tens noção de quantas vezes já morreste?

- montanhas de vezes. é ou não a melhor merda desta vida?

- pior pior é a ressaca da morte.

- temos que treinar o coração para o desassossego.



life is a motherfucking crazy bitch


sexta-feira, 15 de julho de 2016

da morte

que armas tens tu contra a convicção?
diz-me, são muros altos de pedra antiga
um areal imenso e um mar
ah, um mar que se afunda dentro dos olhos.

que armas tens tu contra a violência deste dia?
diz-me, onde anda o amor e a revolução
os olhos vidrados dos ideais
as mãos calejadas de quem não se deixa engolir.

que armas tens tu contra os teus irmãos?
diz-me, o cheiro a sangue não te comove?
onde estão os homens a quem cortaram a língua
diz-me onde estão.

calcados por fatos e gravatas e sapatos
protocolos, palmadinhas nas costas da podridão.
diz-me da liberdade, da igualdade, da fraternidade

onde estão?

quinta-feira, 14 de julho de 2016

yx

- nunca encontrei a fórmula certa. por vezes um mais um deu trinta e seis. aliás, houve um dia em que surgiu uma asa de borboleta no meio dos números.

- isso preocupa-te?

- não. escrevi um merda qualquer acerca do amor, gostava que lesses.

- sei exatamente o que pensas do amor.

- sabes?

- é tu sorrires-me e eu sorrir-te de volta.

- verdade.

- nunca te serviram as ciências exactas.


não precisas de mim
tens os pássaros e as alegrias
da concretização.

os teus passos são largos
e as tuas mãos abertas ao incêndio.
é a tua voz que atiça os cães com cio
que antes dormiam debaixo das janelas.

não precisas ter medo
tens a tua pele e todas as máscaras
um corpo habituado à crueldade das estações.

tens o sorriso largo como uma nuvem de aço
e a alma que amanhece a tocar dias seguintes.
não precisas ter música para seres canção.


quarta-feira, 13 de julho de 2016

Al Berto - Lunário


loop

- lembras-te quanto tempo demorei a habituar-me ao silêncio?

- hm hm. deixaste tudo registado. se olharmos para a tua pele com a luz certa, consegue-se perceber.

- sabes como é ter novamente tudo desarrumado, os livros abertos em cima da cama. obrigar os olhos a fugir às palavras. cerrar os punhos contra o peito. sabes como é?

- perfeitamente.

- de repente não sabes mais de ti, reconheces o cheiro, depois a voz. subitamente não há tempo e és novamente um animal ferido numa estrada secundária.

- dói?

- dá-me um cigarro.

- tens a cabeça toda fodida.

- eu sei.



diurno

de repente já não são os homens que descem a rua
são as ruas que atropelam os homens
e é o silêncio dos tigres a avançar sobre as esferas do tempo

de repente já não há nada para inventar ou inverter na colocação de espaços entre as palavras
e é o inverno que fica por dizer, pendurado nas mãos dos poetas
que se assemelham a bichos deitados em lençóis brancos.

não encontraremos um nome para este dia
por muito que se iluda a pele, o suor
uma espada que atravessa o desassossego

de repente o mundo é apenas um copo
onde repousam flores de plástico e tecido
iludindo-se com a água que as inunda.

mas o amor.




terça-feira, 12 de julho de 2016

da cegueira

é o destino que nos rasga a carne
dos pulsos à boca em movimentos contínuos
a saliva que nos abre os poros
à paralisia dos sentidos

é a luz intermitente dos teus olhos
que vem habitar as páginas em branco
num livro em que não existimos

os dentes, a língua, os lábios
expostos à tenacidade das promessas

por cumprir

toda a nossa vida.


claridade

és em mim o dia que espreita
a claridade da música que arregala os olhos do infinito
a corda que arrasta o corpo na fragilidade das palavras

se fosse hoje, tinha aberto todas as janelas
e a copa dessa árvore teria avançado para dentro de casa
estariamos hoje no limite da certeza
com os braços esticados e os dedos quase a tocar o sol

não te dei nada, de bom ou mau
nem o aroma do café acabado de fazer
nem o cheiro nauseabundo dos prédios em construção

nada.

uma linha de névoa que avança sobre a cidade
os frutos intactos do princípio do mundo
o prodigioso oscilar dos teleféricos sobre as pontes.

nada.

mas tu és em mim um rio que nasce.




domingo, 10 de julho de 2016

cativeiro

como poderia prever
que encontraria a liberdade
na prisão dos teus braços


acordar



sábado, 9 de julho de 2016

sussurro

escrever-te é gritar que existes
num lugar que se situa
fora do meu corpo.


os lugares da essência


sexta-feira, 8 de julho de 2016

paris

longos são os braços que nos
unem a este dia.
invadiste a chuva para dizer que
sempre nos restaremos.




diapositvo I

tens que esconder
tens que contrariar
não sentir
nada. nada. nada.

tens que olhar
para a frente
apenas para a frente.

não tens coração
lembra-te
não tens coração.

tens que esconder
tens que fugir.

(mas)
já.



quinta-feira, 7 de julho de 2016

ida e volta

não te esqueças de ver se a planta tem água
não te esqueças de sacudir o tapete da entrada.

lembra-te das coisas mais simples
como mudar a lâmpada do corredor
estender a roupa, apanhar a roupa, passar a roupa
a ferro
e fogo

lembra-te de manter a distância
entre o grito e voo
a saliva nos desejos mais puros.

não te esqueças do caminho
que te traz
aqui.


lovers die faster


segredo

eu costumava sonhar com aviões
bicicletas e comboios.
coisas que nos evitam as permanências.

dás-me a mão, dou-te a mão.
eu costumava não te dizer
nenhuma palavra que denunciasse
este crime.

não poderias saber do assalto.
do homicídio perfeito que cometias
só por existires na amplitude dos meus passos.

tu não podias saber, não podias.
da faca a desenhar os lábios em frente ao espelho.
dos demónios que dançavam nos olhos
dos amantes em ferida.

não podes saber que engoli o tempo
para me sobreviver.
não podes saber.




quarta-feira, 6 de julho de 2016

honestidade

é esse sorriso

esse precisamente

que te nasce nos lábios
e se alastra
a todo o corpo

esse sorriso que te acontece
quando não estou a olhar.

é esse que eu quero guardar.



brindemos


a mágoa em visita

foram dias em que quase me esqueci do teu nome
horas infindas sem tocar nos livros, desalinhados na estante

semanas e semanas que percorri em círculo
sem lágrimas nem nexo.

os pássaros, lá fora, alinhados nos cabos
e o vidro que deixei de limpar para não entrar
a claridade.

cá dentro, tudo desarrumado
canetas, cinza, folhas, maços de tabaco vazios
incenso, o x-acto, o xanax, as aspirinas.

o armário cheio de camisolas de manga comprida
todas as chaves penduradas atrás da porta.

foram anos no chão a construir muros
a olhar por cima do ombro
a pisar as flores que teimavam em crescer
no chão do quarto.

dias, dias, dias, dias
esconder as feridas.

é preciso esconder as feridas.
treinar o sorriso ao espelho, é preciso.
amanhã vai ser melhor.
amanhã é que vai ser.
é preciso vestir um casaco
esconder as feridas, sorrir.





nascer do sol

o sol nasce

quando
me
morres
de
felicidade


nas mãos.


os lugares da escrita


da imensidão das marés

atiras uma pedra à água
ela desaparece.

como o amor.

quando o entregas ao mundo
e o deixas viver fora de ti
podes imaginar que atravessa
o oceano, tempestivo e frágil

podes pensar que fica ali
no fundo do mar
enterrado na areia
a lamber o sal do tempo.

quando o deixas viver
fora de ti, perdes-lhes o rasto.
podes pensar que fica pousado
na rebentação das ondas
ou que desliza na imensidão
do espaço.

já não tens controlo.
viverás o resto da vida
a confundir outras pedras
com a que viste desaparecer
na água.

a imaginar que eventualmente
uma linha ténue de espuma
poderá devolver-te às mãos
aquilo que deste à vida.

talvez nunca te regresse
e tenhas que assistir
inquieto
à revolta dos dias.

nenhuma pedra
sabe ser pedra
no centro das mãos.



terça-feira, 5 de julho de 2016

Gustavo Arruda - O Céu de Todas as Cidades


inversão

acorda-me antes de saíres
quero mostrar-te uma coisa
que descobri a noite passada

morreu um pássaro
no parapeito da janela da sala.

dá-me a mão
vou mostrar-te uma coisa
que descobri a noite passada.

sim, terás que dar passos largos
por cima dos livros
espalhei-os todos no chão
vamos queimá-los.

descobri a noite passada
(ao ver o pássaro sucumbir
sem dor, delicado como um beijo)

que és tu a poesia.

dá-me os fósforos.






dos objectos da inquietação

quando
os meus olhos

pousam
nos teus olhos

eu fico em dívida
com a humanidade inteira.



segunda-feira, 4 de julho de 2016

auto retrato

a minha solidão é a dos filhos únicos.

um quarto cheio de brinquedos.
a única sobremesa, a que pode ser tudo
ou nada.

esperta, rebelde com a mania das revoluções.
a que é do contra mas não sabe ir contra.
a que escreve nas escadas do escritório
e se contorce para não dar uso ao coração.

aquela que acende cigarros com o olhar
e mexe o café para preencher o tempo
coleciona cadernos vazios para acreditar
que o amanhã existe.


a que entre o quente e o frio
escolheu o morno.

que tem um par de asas,
mas apenas como adorno.






domingo, 3 de julho de 2016

da anatomia dos astros

gosto de ti hoje
como se conhecesse todos os lugares
e tivesse cheirado todas as flores
e tocado a beleza da mágoa com a ponta dos dedos

gosto de ti hoje
como se tivesse sido feliz todos os dias
e não tivesse hora marcada para as lágrimas
como se tivesse encontrado novas palavras
em todos os livros

gosto de ti hoje
como se tivesse sofrido todas as perdas
e as feridas se abrissem à claridade
como se nos lábios transportasse todos os beijos


e ainda assim só nos teus braços 
me reconhecesse
só na tua pele me encontrasse
e só no teu sorriso essa borboleta pousasse
para dizer que, afinal, é apenas no teu peito
que os meus olhos se fecham.




porque tu

impossível é voar
com os olhos postos no chão


sexta-feira, 1 de julho de 2016

projecto de fuga

que horas são?

nunca saberemos o fim da história
(falta-nos a última página de todos os livros)
esporadicamente debruçar-te-ás no parapeito da janela de uma casa pintada de branco
numa rua repleta de casas pintadas de branco
todas terrivelmente iguais.

com um copo de vinho na mão,
talvez consigas daí ver o mar
quem sabe, poderás pressentir dois pés descalços a caminhar sobre a areia.

fecharam todos os cafés,  pagaste o meu?
já sabes o nome deste animal que nos habita
por baixo da pele?

tu não querias um mundo igual todos os
dias mas, curiosamente, foi exatamente o que nos sobrou
pássaros que pousam nos lábios
e a arquitectura perfeita da fuga.

foste em mim, todos os lugares
quando julguei ter engolido o sol
quando o cigarro caiu apagado da beira da mesa
nos trilhos em que pronunciamos todas as palavras proibidas
ou ainda quando eram os teus dedos a percorrer o meu cabelo

continuarei a prever o momento em que acordas
e adivinho o brilho mais fundo nos teus olhos de menino ainda que tenhas passado a odiar o tempo
quase tanto como eu

este café é amargo, como a monotonia.
ela vai embora, segura as lágrimas.

promete-me que da próxima vez que nascermos
não vamos ter medo.



única certeza

estamos hoje mais longe do que nunca


da concretização dos absurdos

consigo prever o momento em que acordas
abres os olhos devagar, coças a canela em esforço
há uma certa inquietude nos teus movimentos

olhas para o lado esquerdo, depois para o lado direito
as mesmas paredes, adivinho-te um sorriso curto

talvez uma qualquer memória feliz te atravesse
respiras ainda devagar como se os ponteiros do relógio
te guiassem suavemente por um universo paralelo

sentas-te na cama, os pés juntos.
um impulso.
chego-te à mão uma caneca de café.

talvez não tenhamos que morrer hoje.




cenas de pessoas

dois comentários da mesma pessoa, esta manhã (e o dia ainda mal começou):

- "ontem choraram mais do que umas meninas";
- "aquele bichão..."

começa a irritar esta coisa de ter que dividir o oxigénio.