são tão longos os teus braços
e tão lassos os meus olhos
que quase acreditei que me
morrerias naquela noite.
espera, não.
são tão largos os teus lábios
desenhados como estradas de fogo
sobre a cicuta dos dias
que quase seria possível
viver entre eles
e ascender ao céu da
tua boca.
"O tempo de sedução terminou. Terás de me tocar, terás de
trocar o tacto dos olhos pelo tacto dos dedos. Apenas persistirá o
jogo, a cumplicidade, e uma ténue vibração do corpo que se
perdeu contra o meu corpo.
Por isso me ergo daqui e atravesso estas imagens coladas às
paredes, e ao atravessá-las descubro que estou perdido, e
condenado também a perder-te."
gostava tanto de saber falar italiano
e tocar piano, ter um piano no meio da sala
e tocar a moonlight sonata enquanto abres
a porta e te vais para sempre.
eu a fingir não me importar, a fechar os olhos
nas teclas do piano, no meio da sala.
havias de dizer que te abandonei
que enquanto saías choraste e eu continuei a tocar.
e eu tocaria até morrer de fome ao piano.
cada um com o seu abandono,
eu com o meu piano e tu com as tuas lágrimas.
a música sempre a tocar e tu a descer as escadas
eu a ouvir os teus passos e tu a minha música
cada um com o seu abandono.
tu a abrires a porta e eu a abrir os dedos.
tu a desceres a rua com a tua dor nos joelhos
eu a subir as notas com a minha dor de coração.
eu a morrer de fome ao piano.
a música sempre a tocar.
cada um com o seu abandono.
havemos de ficar aqui
à espera que a vida nos trate de tudo.
daqueles impressos há semanas
pousados na mesa, para preencher.
da acidez ocasional que nos
percorre o esófago.
eventualmente tudo se resolverá.
a vida faz-nos as malinhas
e talvez nos recambie para
um sítio bem longe daqui.
assim, tudo resolvido.
os outros que se chateiem
que construam coisas
que façam acontecer
que eu quero é ver o mar.
talvez a vida mo traga aqui.
(...)"O amor é fodido. Nunca sabemos se estamos a dar ou a receber. Os teus
poemas também eram ricos. Transcrevo um de memória, para gáudio de quem
nos estiver a ler: « A quem, a quem hei-de-me dar; eu que já soube o que dava e
agora não sei mais nada? A quem hei-de dar a verdade que guardo tão mal, tal é
o mal que ele me faz: dar-me vida e nada mais» .
Escrevemos coisas parvas, perguntas já previamente concebidas para obter
respostas rápidas. Até parece que estamos a falar. Num dos nossos quartos.
« O teu mal» , dizias tu com frequência, sempre como se o mal fosse só
aquele e não contassem os milhares já indentificados ou por identificar, « é só
quereres quem não te quer e amares só quem for capaz de amar-te até à morte
sem nunca te ter…» .
De que nos serviu falar? De que nos serve escrever? Dizem-nos, quando
somos pequenos, que as mulheres gostam. Mas tu nunca gostaste. « A quantas
não terás já tu escrito?»
E eu respondia-te sinceramente: a mais de cem."(...)
odeio-te porque me vês.
porque me és, maior
do que todos os medos.
ainda nem nascemos
e os dias já são tão estreitos
como lâminas que nos apertam
a cabeça contra os joelhos.
o sangue escorre e suja
o tapete, ensopado
só faltava mesmo a merda
do tapete para limpar.
como se não bastasse
digerir a dor, relacionar
todos os acontecimentos
com inevitabilidades.
como se não bastasse
o jantar, pôr a mesa
arrumar a mesa
agora a merda do tapete
todo sujo para limpar.
nenhum nome para as psicoses
bate três vezes com o pulso
no teu livro favorito.
deixa-te invadir pelas lâminas
afiadas, isso...
sente os ossos estalar,
estamos quase a chegar
só mais duas estações
outono, inverno, não!!
primavera, quando nascem
as primeiras flores
quando os pássaros
cantam os arrepios.
tinhas mesmo que inventar qualquer merda para te foder o juízo não era minha menina? não te bastou faltar às aulas todo o 10º ano e a prof de alemão ainda te passar à rasquinha, grande consideração que eles tinham por ti minha burra. passar de ano num ano em que nem pões os pés na escola é provavelmente o ponto alto da tua vida.
já lá vai, foi há quê? 15 anos yaaa, 15 anos. deves ter mesmo uma vida de merda para ainda te lembrares disso. vai mas é fotografar copos de cerveja e fingir que és feliz que assim dás menos trabalho.
às vezes pergunto-me se o Rui terá conseguido comer todas as gajas que queria, tinha um ar tão desajeitado e ainda por cima imitava gaivotas quando estava bêbado. deve estar todo pipi agora a provar vinhos em
quintas famosas, rodeado das gajas que quer e que não quer.
tipo eu, mas sem o pipi, sem os vinhos, sem as quintas famosas, sem as gajas. só ali.
cobrem-se os corpos de musgo
ao tentar evitar a noite.
as asas na tepidez das feridas
alcançam a sensação de abismo.
terás que inventar outra algazarra
para entorpecer os pensamentos mais velozes.
palavras escritas a medo debaixo das unhas.
arrancas da pele a recorrência dos vícios
é preciso prender os lábios entre os lábios
e devolver à boca o silêncio e a incerteza.
esconder as armas nos bolsos rasgados
da alienação. tomar comprimidos para o coração.
talvez possas guardar ainda um arrepio
uma pequena memória de um dia por acontecer
a saliva e os nós dos dedos sem contraindicações
o amargo, o agravo, a alarvidade da paixão.
quantos gritos mais terei que conter
até que amanheça e as aves me atravessem
as têmporas?
não quero ler os jornais.
apenas beber este café
na imbecilidade de mais um dia.
eu sei que o mundo vai mal
que há uma névoa acesa nos meus olhos
mesmo quando não quero saber as notícias.
é a crueldade dos homens que me traz
o inferno à boca.
que me faz cair na espiral inevitável
do tempo.
e olho os relógios para não ver as feridas.
acendo cigarros para acelerar o fim.
eu sei
todos os ossos do meu corpo são fuga
e por muito que cerre as pálpebras
eu vejo
a prontidão das falésias a atravessar
o corpo.
se ao menos existisses fora de mim
e viesses povoar a inércia desta cidade
que já não tem dentes, nem mãos
para o abraço.
se ao menos os teus olhos
viessem acender a paixão das ruas
ou apenas pousar palavras nos becos
mais improváveis.
qualquer coisa que nos devolva a vida.
que nos salve da intermitência das horas.
a ana tem duas doenças degenerativas.
uma que lhe vai roubando os movimentos, lentamente como um animal selvagem sem fome.
soube talvez há uns 12 anos, num diagnóstico fatal.
a outra chama-se antónio. dessa doença padece há mais de 30 anos.
mas agora que o antónio não consegue lidar com
a frustração de uma alma que não ama, vinga-se num corpo que não consegue responder.
a ana precisa de ajuda para as coisas mais simples
como descer as escadas do patamar e caminhar
até ao café atrás de casa. a ana tem sempre um sorriso para oferecer a quem passa.
a ana deseja tudo de bom a toda a gente.
o antónio bate na ana. porque ela não desistiu de si.
o antónio grita com a ana porque ela não quer
morrer antes do seu corpo.
a ana não sabe que pode ser salva. a ana não sabe.
por muito que as queixas se acumulem nas entidades competentes, a ana não sabe.
ontem foi à beira do mar e quando me cruzei com ela disse-me que viu pessoas muito felizes e que chorou muito porque adorava poder ir à praia.
a ana já não chora por querer ser feliz.
a ana limita-se a gerir a infelicidade.
a ana limita-se a implorar que antónio pare, nunca que não comece.
gostava tanto que a ana fosse à praia.
gostava tanto que o antónio tivesse lido neruda.
és luz.
a nítida sensação de caminho certo
como se dentro de ti caminhasse o destino
lento e previsível, sem qualquer esforço.
ainda que esta avenida esteja inundada de gente
e o desconforto das máscaras nos trave
és luz
e todos os teus movimentos me atravessam
golpeando o que há muito esqueci.
tens a serenidade dos jardins ao sábado de manhã
e a força das mensagens escondidas nos poemas mais simples
limpas os óculos, dizes que está vento, que está calor
e essas são as palavras mais bonitas que ouvi.
és claridade,
o rio que se revolta, que se entorpece e que se levanta
que avança lento e forte ao encontro dos lábios.
talvez precisemos de reescrever os silêncios,
a tristeza do sol a cair atrás das casas
ou o voo perturbado dos pardais no meio da cidade
agora que a metafísica é um lugar sem gente
e o corpo treme ao percorrer as mesmas ruas
talvez precisemos de criar uma divisão sem história
dás-me a mão e não me lembro dos dias até aqui
o tempo atravessa-me o ventre como uma nova ferida
tudo neste momento são lugares que devias conhecer
ruas que atravessas sem medo
e um cansaço pelo qual não te deixas vencer.
talvez precisemos de reinventar o sorriso
criar novas palavras para habitar os arrependimentos.
já não temos Istambul, meu amor
as ruas de Paris estão cobertas de sangue
já não veremos Damasco ao pôr do sol
e mesmo Londres escapa-nos entre os dedos
mas para que serviam todos esses lugares
se quando os tinha, os teus olhos não existiam
e o que me atrevessava o peito era só o vento quente de julho
já não temos nada de puro, meu amor
nem janelas abertas sem medo de doenças
nem coragem para correr esta avenida
ou mesmo a fragilidade de quem não consegue pronunciar todas as palavras.
restam-nos os atrasos do metro
os prédios em construção numa dor que não sentimos ainda
bilhetes feitos de pó e lábios que se entreabrem às possibilidades
bastam-me os teus olhos quando nada me chega
e o vazio é um lobo que me morde as alucinações.
se ao menos houvesse uma canção para descrever
a poeira cuidadosamente alinhada nos muros
ou as linhas amarelas que proíbem o estacionamento
a velocidade com que se constroem as palpitações
dou a mão a qualquer desconhecido
que me diga em que lugar do meu corpo
tu permaneces.
bastam os teus olhos para saber que
por um triz não me salvaste a vida.
- sabes quando pensas, agora é o momento certo para morrer. os pés sujos de terra, os ouvidos a estourar de emoção, de comoção... sabes?
- já não te apetecia morrer há algum tempo.
- é verdade, há duas formas de morrer. miserável, embebido em dor, o cheiro a éter nos corredores, os gajos todos a correr sabe-se lá pra quê. ou assim, com os pés na terra, o vestido sujo de relva e cerveja, de braços abertos a gritar a tua música favorita. os gajos pensam que te passaste da cabeça e deixam-te só a morrer. quando descobrem que morreste já estás gelada, nada a fazer.
- tens noção de quantas vezes já morreste?
- montanhas de vezes. é ou não a melhor merda desta vida?
- pior pior é a ressaca da morte.
- temos que treinar o coração para o desassossego.
que armas tens tu contra a convicção?
diz-me, são muros altos de pedra antiga
um areal imenso e um mar
ah, um mar que se afunda dentro dos olhos.
que armas tens tu contra a violência deste dia?
diz-me, onde anda o amor e a revolução
os olhos vidrados dos ideais
as mãos calejadas de quem não se deixa engolir.
que armas tens tu contra os teus irmãos?
diz-me, o cheiro a sangue não te comove?
onde estão os homens a quem cortaram a língua
diz-me onde estão.
calcados por fatos e gravatas e sapatos
protocolos, palmadinhas nas costas da podridão.
diz-me da liberdade, da igualdade, da fraternidade
- lembras-te quanto tempo demorei a habituar-me ao silêncio?
- hm hm. deixaste tudo registado. se olharmos para a tua pele com a luz certa, consegue-se perceber.
- sabes como é ter novamente tudo desarrumado, os livros abertos em cima da cama. obrigar os olhos a fugir às palavras. cerrar os punhos contra o peito. sabes como é?
- perfeitamente.
- de repente não sabes mais de ti, reconheces o cheiro, depois a voz. subitamente não há tempo e és novamente um animal ferido numa estrada secundária.
de repente já não são os homens que descem a rua
são as ruas que atropelam os homens
e é o silêncio dos tigres a avançar sobre as esferas do tempo
de repente já não há nada para inventar ou inverter na colocação de espaços entre as palavras
e é o inverno que fica por dizer, pendurado nas mãos dos poetas
que se assemelham a bichos deitados em lençóis brancos.
não encontraremos um nome para este dia
por muito que se iluda a pele, o suor
uma espada que atravessa o desassossego
de repente o mundo é apenas um copo
onde repousam flores de plástico e tecido
iludindo-se com a água que as inunda.
és em mim o dia que espreita
a claridade da música que arregala os olhos do infinito
a corda que arrasta o corpo na fragilidade das palavras
se fosse hoje, tinha aberto todas as janelas
e a copa dessa árvore teria avançado para dentro de casa
estariamos hoje no limite da certeza
com os braços esticados e os dedos quase a tocar o sol
não te dei nada, de bom ou mau
nem o aroma do café acabado de fazer
nem o cheiro nauseabundo dos prédios em construção
nada.
uma linha de névoa que avança sobre a cidade
os frutos intactos do princípio do mundo
o prodigioso oscilar dos teleféricos sobre as pontes.
foram dias em que quase me esqueci do teu nome
horas infindas sem tocar nos livros, desalinhados na estante
semanas e semanas que percorri em círculo
sem lágrimas nem nexo.
os pássaros, lá fora, alinhados nos cabos
e o vidro que deixei de limpar para não entrar
a claridade.
cá dentro, tudo desarrumado
canetas, cinza, folhas, maços de tabaco vazios
incenso, o x-acto, o xanax, as aspirinas.
o armário cheio de camisolas de manga comprida
todas as chaves penduradas atrás da porta.
foram anos no chão a construir muros
a olhar por cima do ombro
a pisar as flores que teimavam em crescer
no chão do quarto.
dias, dias, dias, dias
esconder as feridas.
é preciso esconder as feridas.
treinar o sorriso ao espelho, é preciso.
amanhã vai ser melhor.
amanhã é que vai ser.
é preciso vestir um casaco
esconder as feridas, sorrir.
um quarto cheio de brinquedos.
a única sobremesa, a que pode ser tudo
ou nada.
esperta, rebelde com a mania das revoluções.
a que é do contra mas não sabe ir contra.
a que escreve nas escadas do escritório
e se contorce para não dar uso ao coração.
aquela que acende cigarros com o olhar
e mexe o café para preencher o tempo
coleciona cadernos vazios para acreditar
que o amanhã existe.
nunca saberemos o fim da história
(falta-nos a última página de todos os livros)
esporadicamente debruçar-te-ás no parapeito da janela de uma casa pintada de branco
numa rua repleta de casas pintadas de branco
todas terrivelmente iguais.
com um copo de vinho na mão,
talvez consigas daí ver o mar
quem sabe, poderás pressentir dois pés descalços a caminhar sobre a areia.
fecharam todos os cafés, pagaste o meu?
já sabes o nome deste animal que nos habita
por baixo da pele?
tu não querias um mundo igual todos os
dias mas, curiosamente, foi exatamente o que nos sobrou
pássaros que pousam nos lábios
e a arquitectura perfeita da fuga.
foste em mim, todos os lugares
quando julguei ter engolido o sol
quando o cigarro caiu apagado da beira da mesa
nos trilhos em que pronunciamos todas as palavras proibidas
ou ainda quando eram os teus dedos a percorrer o meu cabelo
continuarei a prever o momento em que acordas
e adivinho o brilho mais fundo nos teus olhos de menino ainda que tenhas passado a odiar o tempo
quase tanto como eu
este café é amargo, como a monotonia.
ela vai embora, segura as lágrimas.
promete-me que da próxima vez que nascermos
não vamos ter medo.