terça-feira, 13 de setembro de 2016

nada

a tua angústia é tão diferente da minha, dizia-te. e os meus olhos pousavam nos teus e tu percebias imediatamente o significado das minhas palavras. a minha angústia, como o fecho do vestido que desapertas devagar. depois eu pousava a minha mão na tua e dava nomes às linhas das tuas mãos e era tudo tão simples.
aqui, na tua mão direita, esta linha significa que a guerra acabou. sorris, abraças-me e gritas que a guerra acabou. mesmo que lá fora continuem os aviões a bombardear as casas. nunca era a nossa. e eu dizia a guerra acabou e era fácil, acabava mesmo. a minha cabeça no teu peito no fim da guerra ainda que persistissem os bombardeamentos lá fora.
cheira a mortos, dizias e eu silenciava-te com os dedos. perdi-me a olhar-te a escrever esta manhã, talvez tenham apodrecido todos os frutos lá fora porque sei lá, me pedi a olhar-te esta manhã a escrever. não são mortos, são as maçãs, são as laranjas, são os figos, são os frutos podres porque me perdi esta manhã.
e tu sorrias e abraçavas-me e lá fora os mortos e os bombardeamentos e a tua angústia tão diferente da minha e o vestido a deslizar. tão simples.



Sem comentários: