sábado, 17 de setembro de 2016

Fim
sabes como detesto as palavras. as minhas palavras, o que digo, o que escrevo. as palavras fazem existir o que sou, odeio.
se não fossem as palavras, não teriamos sido nada. não seriamos nada agora, pó sobre os móveis ou objetos de enfeitar a morte.
mas é sabádo, um dia que eu costumo gostar e eu detesto tanto as palavras que tenho coladas à pele. esta saudade que parece queimar como tudo o que sou.




sexta-feira, 16 de setembro de 2016

copenhaga

diz-me o que te faz sorrir
que eu tratarei de o teres todos os dias
ainda que a ausência sejam folhas secas
a povoar os dias e conversas inúteis se
alastrem para lá das horas.

diz-me por favor que sorris todos os dias
ainda que saber-te feliz me arrefeça os
músculos e me traga à boca o sabor
ansioso dos pretéritos. essa luz que
não se apagará nunca no centro das mãos
os desejos que percorrem agora devagar
a plenitude oca do silêncio.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

exercícios do esquecimento

nas tuas mãos
esquecer que existo.


aleatórios

mandaram-te fechar a janela
e tu fechaste
mandaram-te serrar a madeira
e tu correste a amontoar lenha
junto ao muro da entrada
mandaram-te vestir a camisa
e tu vestiste
e que ar de menino direito
com que ficaste!

e na hora de te deitares
adormeceste
com a lenha a arder na lareira
talvez sonhasses
da boca que se entreabriu
tu não esqueceste
do amor que ela quis
que lhe emprestasses.

quando o dia amanheceu
tu não soubeste
se era teu o coração
despedaçado
e da janela que tu querias
não ter fechado
brotou a luz mais pura
que conheceste.



quarta-feira, 14 de setembro de 2016

geometria descritiva

não brinques com as palavras

as pa lavras são coisa séria
a sério?

gosto de esquecer palavras difíceis
como
nós

dos dedos
são segredos?
de marinheiro
cortadas ou por in teiro

serão?
cONceito básico da negação
e tristeza.
ora concerteza senhora
por que não?

eu esqueço.
adormeço?
pois adormeça
e esqueça.
pois então
não brinques
com o coração.

e por que não?

lilases e outros sacrifícios

gostava de escrever-te coisas cheias de ternura, como os teus olhos. coisas cheias de emoção como os teus lábios. gostava de escrever-te sentimentos tão longos que teria que mudar de linha infinitamente.
palavras a fazer covinhas no teu peito. palavras com beijos a provocar a dilatação dos poros.
dias inteiros sem luz  a minha cidade tão perto da tua cidade. os teus pés, as tuas mãos no meu trapézio e as mãos tão compridas. os braços tão tensos, cheios de ternura como as palavras que eu gostava tanto de te escrever.

acendes-me o cigarro depois do livro, o cigarro depois do café, o cigarro depois do orgasmo, o cigarro depois do jantar.e eu invento uma história para te contar ao ouvido. e tu perguntas-me se é verdade e eu digo-te que a verdade foi uma coisa que os adultos inventaram para ter onde pousar os pés. e eu escrevo-te coisas cheias de ternura. pequenos papéis que espalho pela casa e depois prometemos que eu me esqueço de ti e tu te esqueces de mim. coisas cheias de ternura, era o que eu gostava de te escrever.


small talks

esta luz é insuportável.
esta luz sobre as cabeças suadas destes homens e destas mulheres
é absolutamente insuportável.
eu grito, gesticulo, eu faço parte de uma humanidade que não tenho.
eu falo muito alto para não ouvir a minha dor e distraio os músculos para não sentir a minha dor.
e esta luz, a bater-me fundo nos olhos, a rasgar a retina, esta luz. ou digo antes esta fotografia.
ou digo antes este café, este café é intragável. demasiado quente, demasiado áspero.
este chão, este solo demasiado tortuoso. os dias enfeitados de coisas tristes. os dias com feridas conservadas em álcool. e esta luz a bater nos meus joelhos, o barulho da água a correr dentro dos canos. insuportável.
já li cento e quarenta e cinco páginas do livro. já me doeram os olhos cento e quarenta e cinco vezes e quase chorei trezentas e trinta duas lágrimas. e ela, com o seu vestido preto tão perfeita, o pescoço esguio. uma angústia, uma inquietação tão grande como a minha. apetece-me abraçá-la. dizer-lhe: eu sei, personagem do meu livro. eu sei que te dói o coração até às entranhas. e que gritas muito alto, e abres as mãos e gesticulas para não ouvires a faca atravessar a pele. é mais fácil se houver muito barulho.
mas esta luz, este lugar, esta cadeira, esta sala, esta cidade, este país que não me serve. esta dor em que eu não caibo. insuportável. o suor a escorrer na nuca destes homens e destas mulheres e a luz. a luz. insuportável.



nada

eu, que não sei sorrir. que me olho em frente ao espelho e treino. parece-me que tenho demasiados dentes na boca. ou os dentes são em número certo mas são tortos ou muito pequenos. não sei qual é o problema mas eu não consigo sorrir. eu fico em frente ao espelho e penso numa coisa muito muito boa. como por exemplo naquele dia em que disseste o meu nome pela primeira vez. eu penso nisso mas não sei sorrir.

que queres que te diga? às vezes pareces-me o mais miserável verme, a subir pelas minhas pernas, pelas minhas coxas, eu com medo, a sorrir de medo. pareces-me tão forte, tão seguro de ti.
depois fecho os olhos por dois segundos e quando os abro, já és todo arrepio e medo e eu sinto-me culpada e fico a pensar que devia ter-te abraçado.

eu já revi todas as fotografias. normalmente não sorrio. quando o faço, nota-se perfeitamente que não sei. eu treino e penso em coisas muito muito boas, geralmente és tu nos meus sorrisos tortos ou demasiado pequenos. não sei qual é o problema.


Wordsong - Al Berto 14 de Janeiro

o dia começa assim.
vieste ao meu sonho, pegaste na minha mão e beijaste-a.
não te vejo há tantos anos e, esta noite vieste beijar-me a mão.
como se soubesses sempre o que preciso.


terça-feira, 13 de setembro de 2016

revisão de aulas anteriores - filme de hoje


Mão Morta - Tu disseste



TU DISSESTE
[Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro]


Tu disseste "quero saborear o infinito"
Eu disse "a frescura das maçãs matinais revela-nos segredos insondáveis"
Tu disseste "sentir a aragem que balança os dependurados"
Eu disse "é o medo o que nos vem acariciar"
Tu disseste "eu também já tive medo. muito medo. recusava-me a abrir a janela, a transpôr o limiar da porta"
Eu disse "acabamos a gostar do medo, do arrepio que nos suspende a fala"
Tu disseste "um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro por descobrir"
Eu disse "..."
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"
Tu disseste "agora procuro o desígnio da vida. às vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon. escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo. depois queimo tudo e prossigo a minha busca"
Eu disse "eu não faço nada. fico horas a olhar para uma mancha na parede"
Tu disseste "e nunca sentiste a mancha a alastrar, as suas formas num palpitar quase imperceptível?"
Eu disse "não. a mancha continua no mesmo sítio, eu continuo a olhar para ela e não se passa nada"
Tu disseste "e no entanto a mancha alastra e toma conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês"
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"

nada

a tua angústia é tão diferente da minha, dizia-te. e os meus olhos pousavam nos teus e tu percebias imediatamente o significado das minhas palavras. a minha angústia, como o fecho do vestido que desapertas devagar. depois eu pousava a minha mão na tua e dava nomes às linhas das tuas mãos e era tudo tão simples.
aqui, na tua mão direita, esta linha significa que a guerra acabou. sorris, abraças-me e gritas que a guerra acabou. mesmo que lá fora continuem os aviões a bombardear as casas. nunca era a nossa. e eu dizia a guerra acabou e era fácil, acabava mesmo. a minha cabeça no teu peito no fim da guerra ainda que persistissem os bombardeamentos lá fora.
cheira a mortos, dizias e eu silenciava-te com os dedos. perdi-me a olhar-te a escrever esta manhã, talvez tenham apodrecido todos os frutos lá fora porque sei lá, me pedi a olhar-te esta manhã a escrever. não são mortos, são as maçãs, são as laranjas, são os figos, são os frutos podres porque me perdi esta manhã.
e tu sorrias e abraçavas-me e lá fora os mortos e os bombardeamentos e a tua angústia tão diferente da minha e o vestido a deslizar. tão simples.


nada

para ti não.
nunca foram os meus olhos, nunca foram os nossos dias, nunca foi aquela noite que não chegou a acontecer.
nem os lábios quase encostados, nem os dedos, o café, um primeiro encontro de dois segundos.
nunca foi isso.
foram sempre coisas tuas, que viveste sozinho. filmes em que não existem outras personagens. tu e os figurantes.
eu a figurar na tua vida como uma lâmpada que ameaça fundir. ou como aquele copo que pousaste mesmo na pontinha da mesa.
nunca foi o meu combate, ou a minha tristeza, nem mesmo a minha alegria mais rasgada. nunca foi nada disso.
o nós só coube na literatura antiga. foram sempre as tuas conquistas, o sol mais brilhante nos teus lábios cheios de ternura.

e a tua felicidade ao ter encontrado a fórmula da sobrevivência.
a tua felicidade, a tua sobrevivência
cravadas como bandarilhas no meu dorso.



nada

não sei como cortar um cadáver. pensava Ana olhando para Alberto deliciosamente morto em cima da bancada da cozinha.
talvez tenha que consultar a enciclopédia ou uns vídeos de anatomia, talvez deva treinar primeiro noutros cadáveres, prosseguiu.
quem olha agora estes dois, pela fissura que existe na parede mestra da casa, não poderia imaginar o quanto se amam.
ele morto, é difícil imaginar um morto com o coração acelerado e com as pernas a tremer. ela, acende um cigarro, limpa as mãos cheias de sangue à camisa verde. devíamos ter música Alberto, pensa. e começa a cantar uma música que aconteceu dançarem anos antes numa festa de uma terra longínqua onde foram para por mero acaso ao desviar-se da estrada principal devido a um acidente.
o morto quase sorri.
como cortar um cadáver. pesquisar. será que quis dizer como transformar o amor em pequenos amuletos?


a propósito dos filhos do paraíso

oh meu amor, como pudeste perder os meus sapatos cor de rosa.
os meus sapatos prediletos, os meus únicos sapatos.
diz-me agora, que mão se estenderá para a primeira dança do baile
sem os meus sapatos, que nunca saíram desta rua mas parecem
ter percorrido o mundo
tal como tu, com o teu rosto velho e triste, de quem viu
todas as mágoas e saboreou sentado à mesa, todas as indiferenças
sem ter saído sequer desta aldeia.
excepto uma vez, em que quase morrias das doenças mundanas
dos sabores boémios da contradição.

como foste capaz meu amor, de perder os meus sapatos.
como serão agora vividos os dias, alternando os pés
para não doer tanto o coração.



segunda-feira, 12 de setembro de 2016

nada

abro-te a porta e digo, peço desculpa mas não estou. encontro-me ausente ou desencontro-me ausente. talvez ponha só um papel na porta que diga "volto já". ou não diga nada. ninguém precisa de saber. provavelmente nem virás aqui à porta e, se vieres é para dizeres que é melhor preparar-me que vai chover. que é melhor vestir o casaco que vai estar frio. ou para dizeres que eu devia fechar as janelas porque entra vento. ou que te esqueceste da chave no outro dia e queres saber se a engoli.
ou seja, venhas ou não. eu não estou. vou ficar muito quieta e tentar não fazer barulho a respirar embora quase vinte anos de tabaco já se comecem a notar no volume da inspiração.
também se vieres, bates uma vez à porta e desistes, pensas foi às compras ou viajou ou deve ter ido ao café, passa a vida no café. ou não pensas nada ou pensas que te enganaste, ainda bem que não está senão o que lhe diria. de quem é esta casa afinal, pensarás. depois achas que enlouqueceste e que andas a bater à porta de pessoas que não conheces.


nada

estou sempre a escrever a mesma coisa. não preciso que me digam porque eu sei. nada de novo, nada de especial, nada de verdadeiramente importante. estou sempre a escrever a mesma coisa.
banalidades, tretas, sentimentos que deviam arder onde deviam arder. fechados em algum frasco para lhes faltar o oxigénio.
não, não somos iguais, nem parecidos, nem os nossos caminhos foram semelhantes. não comemos da mesma terra, nem nos contentamos com o mesmo nascer do sol. somos tão diferentes quanto é possível ser do lado de cá da neurose. eu não me importo com copos, meios vazios ou meios cheios ou com a música que toca no supermercado.
decerto concordarás que, mesmo o mais vil dos pecados exige alguma exclusividade. pede que se pare a contemplar por determinado tempo aquilo que lhe é único.
mas tu já sabes tudo isto, porque eu estou sempre a escrever a mesma coisa. ainda que não o escrevesse, tu saberias. sabes também que devia ter seguido a minha intuição desde o princípio. devia ter ouvido a voz que me mandava correr, devia ter corrido e fugido do papel e da caneta.
mas eu não me importo de ficar com a culpa outra vez, não é a culpa que me pesa. é saber que por muito que eu tivesse aberto janelas, destruído muros, empunhado espadas incrivelmente afiadas tudo seria igual.
estaríamos precisamente nos mesmo lugares, a contar as mesmas histórias, a evitar os mesmos acidentes.
eu escrevo igual a todas as outras mulheres que te escreviam o número de telefone no vidro do carro, ou que te entregavam bilhetinhos por baixo da mesa ou que te agarravam em jeito de provocação. exatamente igual a qualquer uma delas.
na tua cabeça, uma fila de mulheres iguais a fazer concursos de misses para te agradar, e eu sentada sempre a escrever a mesma coisa, coisas que nem tu nem eu gostamos. mas isso sou eu, sempre meia cheia, sempre meia vazia, a escrever coisas sem qualquer interesse. tão iguais ao que está escrito nos espelhos dos motéis ou nas casas de banho das áreas de serviço.
mas isto são tudo coisas que eu já escrevi milhões de vezes, nada de novo, nada de especial, nada de verdadeiramente importante.


domingo, 11 de setembro de 2016

não sei se lamento ou invejo
aqueles que não te conhecem.


sexta-feira, 9 de setembro de 2016

foram tudo cidades que criamos
dentro das nossas cabeças em pequenas
ampulhetas de vidro fino e frágil

cidades sem conceitos nem moral
mas cheias dos bons costumes da paixão
e candeeiros com luz amarela a iluminar
os becos. tristes animais abandonados

sem tempo ou espaço, tristes bichos
de olhos acesos e patas húmidas.

em volta (envolta)

nas tuas palavras. eu quase me encontro nas tuas palavras. mas de repente, é uma mulher que não fuma. ou são cabelos negros lisos e vestidos de seda vermelha. e eu percebo que não sou eu nas tuas palavras. que não sou eu na tua boca, que não sou eu a recolher-me no teu corpo. eu, às vezes, iludo-me e leio um livro de oitocentas páginas para me provar que gosto de ler, para me encontrar nas palavras de alguém. mas depois é um homem de nariz grande e camisa aos quadrados e eu percebo que não sou eu naquelas palavras. talvez deve-se ler só a primeira frase de todos os livros, de todos os teus discursos. talvez devesse ouvir só a primeira frase de todas as conversas, de todos os anúncios publicitários. e seria sempre eu nas palavras e não apenas a minha sensação de não me encontrar em lugar algum.

um dia eu pensei mesmo mesmo que era eu nas tuas palavras. mas depois era amor e eu percebi que não. devia ter lido só a primeira frase.


quinta-feira, 8 de setembro de 2016

este é um lugar de mortos
estes são os meus cadáveres


sorriso pequeno


afinal o que te resta para além de ser
um átomo que se ilude e se julga alma
ou um baralho de cartas só com
oitos e noves e dez


para além de todo o fumo que te esconde
na inevitabilidade da última dança
os pés acesos e as mãos encostadas
em forma de coração


sugar

a verdade é até relativamente fácil de aferir. estivemos sempre cheios de gente à volta, essa é a verdade. quando não foi na mesa ao lado, quando não foi dentro da casa, quando não foi com o braço encostado no autocarro, foi dentro de nós. mas nunca estivemos realmente sozinhos e essa é uma verdade que aceitarás com facilidade.
mesmo quando eu te dizia, o mundo somos nós e eu não consigo distinguir as cores dos semáforos, eu não sei se as pessoas que se cruzaram connosco usavam casado ou traziam guarda chuva. mesmo quando eu te dizia isso, não era verdade.
ainda que nos imaginasse nos velhos western com o teu cavalo com nome de parque de diversões, e eu com o meu vestido às flores encardido, a servir cerveja a homens com cheiro de terra. mesmo aí, nunca era só tu e eu. no mínimo havia sempre o cavalo a relinchar o teu nome.
a verdade é fácil de encontrar, como vês. no único momento que estivemos perto de estar sozinhos já era tarde, e tínhamos tanta coisa para fazer que imediatamente ficamos novamente rodeados de fantasmas.
é a nossa história, cheia da história dos outros e com quase nada nosso.




hoje acordei com Queen.
não me lembro de ter conduzido até aqui
da cor do isqueiro com que acendi o primeiro cigarro
se tomei café. tomei café?

mas os teus lábios.
hoje acordei com Queen.
mas a tua boca.