sábado, 31 de dezembro de 2011

Ao fundo, o mar que me devora

Ao fundo, o mar que me devora,
todas as aves despidas sobre os muros,
o cheiro dos dedos por apodrecer, ao fundo.
Foram tantas as vezes que me perdi no hálito da manhã
que cheguei a julgar-me secretamente despida de todo o tempo,
a brisa deixou de chegar a este lado da casa,
formou-se de repente uma cortina de silêncio que me rompeu a carne,
o sangue escorreu-me de encontro à parede dos teus olhos.
Nenhum grito foi solto nesta cidade.

Ao fundo, o gemido descrente da falha submersa,
os lilases agitados trespassam o horizonte,
as sílabas ditas a medo no momento hostil do esquecimento,
o luar salivado, ao fundo.
Visto daqui, o inverno subrepõe-se à terra e ao vício.
O cigarro arde até ao osso do trémulo pensamento,
até ao espelho de tudo o que disse poder dar-te,
as romãs jamais se voltarão a fechar,
ser intacto é não ser.

E no fundo desta noite não há nenhuma gaivota fugidía e terna,
não há um sabor definido na boca das ruas.
Ao fundo apenas o medo.
Intacto, sombrio e semi-eterno.


c.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

da simplicidade da ausência


gosto da leveza com que danças em cima dos escombros
a verdade com que olhas as coisas mais simples
o teu riso infantil no atear dos incêndios
gosto tanto de ti.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

dos exercícios da saudade


a tua ausência é um tigre a avançar sobre o meu corpo
enquanto durmo na tenacidade de uma noite que não quis

as mãos na direcção de todas as portas
da casa em que perdi o que restava de mim

eu, apenas uma sombra de éter no vício do esquecimento
enquanto o teu olhar permanece em tudo o que não sou

e atiras para o meio da rua as memórias mais bonitas do que não fomos.


c.

sábado, 17 de dezembro de 2011

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011


eu sei
somos uma canção que chegou ao fim
o espaço reservado à claridade de um dia morto
a sensação amarga do porvir.

esqueço a noite em que os meus olhos foram os teus olhos.

(para não doer)


c.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

dos amores à beira da estrada


o amor é um dia que passou e eu não vi.
houve uma vez em que um homem disse ter todo o amor do mundo
eu quase acreditei e fui ver passar os comboios numa ponte distante
num país que não era o meu.

ele jurou, olhos nos olhos, ter todo o amor do mundo
eu quase acreditei, garanto, quase acreditei.

mas o que é isso, perguntei eu um dia.
ele não soube responder, mostrou-me apenas os seus bolsos vazios.

acho que percebi o que quis dizer com isso.
e é verdade, o amor é um dia que passou e eu não vi.
demasiado distraída a ver os comboios, ou os horizontes, não me lembro.
mas ele jurou que o tinha todo.

 (e eu quase quase acreditei)

c.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

descobertas matinais


Amar-te é só mais uma forma de estar sozinha. Assim como as mãos deslizam na decadência do corpo sem esperar nada além da pele morta, também as feridas preenchem todos os espaços vazios. Antes de ti não havia nada, agora não há nada e não há verdade mais acidental do que esta.

Talvez consiga ainda levantar-me e dar os passos certos em direcção à porta mas de repente, é a janela aberta que me invade, uma brisa que tem o teu cheiro ou a minha imaginação a enlear-se no absurdo desejo de ti.

Não sei quem sou mas fugi sempre das permanências como um pássaro alienado no céu da tua boca.

Amar-te é só mais uma forma de estar sozinha e tu nunca.nunca decoraste o meu nome.


c.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011


vem ter comigo a uma rua qualquer desta cidade
provo os teus lábios num beijo que não acontece
dou-te a mão mas é a chuva que me toca os dedos

vem andar comigo de olhos fechados
ser a luz que se acende nas avenidas larguíssimas da paixão

eu espero todos os dias mas nunca chegas
fumo um cigarro e não penso em nada que não sejas tu
no teu deambular insaciável.

é tão tarde e eu desejo tanto
viver o medo de te perder.

c.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

das unilateralidades do desejo


não precisas de mim
sei-o tão profundamente.

limito-me a atravessar ruas sem fim
mas nenhuma rua desagua no teu corpo
ainda assim, não é tristeza que me absorve os dedos
é antes o teu sorriso quando não estou
quando olhas vagamente para as pessoas
distraído.

é sempre o teu sorriso a invadir os meus dias mais lentos
e eu a desejar ser as pedras que pisas

tu a não querer saber.

no meu mundo não há reinos nem cavalos brancos
apenas o orvalho cobre os corpos dos amantes
que se deram à explosão do desassossego

ah meu desamor! que cruéis os teus lábios de água
se houvesse ainda sangue a latejar dentro de mim
decerto, não te sobreviveria.

c.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

dos canais obtusos do coração

o meu coração, como uma pedra que chutas na rua.

agora que a noite estreitou  as paredes da casa
e não te vejo chegar de nenhum ponto da sala
sinto as feridas à volta das unhas alastrar


podias ter escrito numa parede qualquer

qualquer coisa como até nunca mais

qualquer coisa como o amor é um caroço de pêssego

qualquer coisa.

menos
o silêncio é o instrumento engenhoso das eternas partidas.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011


A tua boca. A tua boca.
Oh, também a tua boca.”
(…) Joaquim Pessoa

E as tuas pálpebras, o teu olhar curioso
A profundidade de um mundo inteiro nos teus olhos

Ah os teus olhos! Tão escuros e brilhantes
Inconsequentes, tão próximos
A acender luzes dentro das minhas mãos
A criar pontes em mundos sem gente
A alucinar, os teus olhos e a tua boca

As linhas dos teus lábios, a saliva
O ar quente a sair da tua boca
E os teus olhos atentos, suspeitos
A tua boca, mordê-la até que a morte nos separe.

c.

canção da amplitude dos vazios


dá-me um dia só da tua vida
para que eu não esqueça
a tua voz profunda como água
a escorrer nos meus dedos

o teu sorriso mais simples
o mais inoportuno, mais desnecessário
para guardar no meu peito
como a última ferida da última partida

só o teu nome, 
basta-me para me subtrair
chegar a zero e ser nada, uma melodia
ou uma morte suave.

será que a morte faz barulho?
dá-me a mão.
sabes que és.

(todos os ossos do meu corpo)


c.