segunda-feira, 12 de setembro de 2016

nada

estou sempre a escrever a mesma coisa. não preciso que me digam porque eu sei. nada de novo, nada de especial, nada de verdadeiramente importante. estou sempre a escrever a mesma coisa.
banalidades, tretas, sentimentos que deviam arder onde deviam arder. fechados em algum frasco para lhes faltar o oxigénio.
não, não somos iguais, nem parecidos, nem os nossos caminhos foram semelhantes. não comemos da mesma terra, nem nos contentamos com o mesmo nascer do sol. somos tão diferentes quanto é possível ser do lado de cá da neurose. eu não me importo com copos, meios vazios ou meios cheios ou com a música que toca no supermercado.
decerto concordarás que, mesmo o mais vil dos pecados exige alguma exclusividade. pede que se pare a contemplar por determinado tempo aquilo que lhe é único.
mas tu já sabes tudo isto, porque eu estou sempre a escrever a mesma coisa. ainda que não o escrevesse, tu saberias. sabes também que devia ter seguido a minha intuição desde o princípio. devia ter ouvido a voz que me mandava correr, devia ter corrido e fugido do papel e da caneta.
mas eu não me importo de ficar com a culpa outra vez, não é a culpa que me pesa. é saber que por muito que eu tivesse aberto janelas, destruído muros, empunhado espadas incrivelmente afiadas tudo seria igual.
estaríamos precisamente nos mesmo lugares, a contar as mesmas histórias, a evitar os mesmos acidentes.
eu escrevo igual a todas as outras mulheres que te escreviam o número de telefone no vidro do carro, ou que te entregavam bilhetinhos por baixo da mesa ou que te agarravam em jeito de provocação. exatamente igual a qualquer uma delas.
na tua cabeça, uma fila de mulheres iguais a fazer concursos de misses para te agradar, e eu sentada sempre a escrever a mesma coisa, coisas que nem tu nem eu gostamos. mas isso sou eu, sempre meia cheia, sempre meia vazia, a escrever coisas sem qualquer interesse. tão iguais ao que está escrito nos espelhos dos motéis ou nas casas de banho das áreas de serviço.
mas isto são tudo coisas que eu já escrevi milhões de vezes, nada de novo, nada de especial, nada de verdadeiramente importante.


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