segunda-feira, 27 de junho de 2016

fotograma II

ela vai embora, faz as malas, segura as lágrimas.
fecha portas, duas voltas na fechadura.

um último momento para olhar pela janela
não voltará a ver pessoas sentadas naquele banco vermelho
no meio da praça, pássaros que pousam na cabeça de ninguém

um último momento para bater com o joelho no móvel da entrada
e arrepender-se pela centésima vez de o ter colocado ali.

ela vai embora, segura as lágrimas e os livros
poemas que ninguém escreveu sobre a nitidez das partidas.

fecha a porta, duas voltas na fechadura.
conta os degraus até à saída, deixa a chave na caixa do correio.

um último momento para olhar para as paredes
não voltará a ver anúncios de reuniões de condomínio.

sai à rua, o ar quente de um verão que se prevê infernal
deixa no contentor os livros e segura as lágrimas.

olha os vizinhos que cumprimenta com um sorriso
morrerão todos, alguns estão já mortos.

um último momento para um café precisamente
na mesa mais à esquerda da esplanada
onde desenhou tantas angústias e pequenas alegrias
capazes de fazer chover.

café curto, chávena fria, adoçante
bom dia menina, hoje vai esta calor.
segura as lágrimas.

vão nascer novas flores encostadas aos muros
ela não as verá, agora que caminha devagar até ao fundo da rua.








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