terça-feira, 23 de agosto de 2016

amnésia




eu não me lembro do dia em que te conheci
nem tu. talvez as paredes fossem ainda brancas
e todos os desejos estivessem por pedir.
ou eram só vazios a rodopiar nas mãos
entre um cigarro e outro, um beijo.
um sorriso que se imagina que vá durar
toda a vida. eu não me lembro. nunca falamos
a nesma língua. talvez estivesse a chover e tivesses apertado o casaco para te proteger o pescoço. eu não me lembro mas é como se doessem, as não lembranças a atravessar o corpo, rente à pele. deves ter pegado nos óculos para os limpar, ter apanhado o metro. talvez tenhas chegado atrasado a algum lugar nesse dia. tu não te lembras. a minha vida mudou num dia que eu não me lembro. devo ter posto o isqueiro dentro do maço de tabaco já a meio e ter-me esgueirado entre a chuva para apanhar o comboio. eu devo ter tomado vários cafés nesse dia sem saber que jamais seria a mesma. inocente pela última vez. sem saber se me atirarias flores ou pedras, a tentar decorar o teu nome. provavelmente a escrevê-lo na primeira linha de uma folha limpa do caderno. a escrever o teu nome e a seguir um ponto de interrogação. e depois as horas a passarem. a certeza que já me tinhas esquecido, que o esquecimento seria também a minha salvação. a olhar pela montra do café, um rapaz que deixou cair os livros, a solidão como uma ferida banal dentro de tudo o que nos habita. eu não me lembro se te fiz alguma pergunta. eu já sabia tudo sobre ti menos o teu nome, que escrevi no caderno e repeti enquanto descia a rua. eu queria dar-te todos os meus livros, as minhas inquietações, a roupa que trazia no corpo. não devo ter dito nada, não me lembro das palavras. o arrepio de quem pressente que nada será igual dali para a frente e o confunde com o frio, devia ser inverno. tu não te lembras. mas no meu peito abriu-se um buraco do tamanho do mundo, talvez por coincidência ou como aviso. eu não me lembro.


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