quinta-feira, 11 de agosto de 2016

consulta I

ele senta-se numa cadeira encostada junto à porta do consultório.
quase feliz por estar no psiquiatra. quase feliz por ter assumido a loucura. ter conduzido até ali devagar como se fosse a última vez sendo contudo a primeira. sorri quando lhe dizem que faz muito bem em procurar ajuda, fazes muito bem em procurar ajuda!
então senta-se ali, na cadeira azul e preta, desconfortável, nitidamente não concebida para loucos e nenhum pensamento o atravessa. chegou meia hora adiantado, como normal, todos os loucos gostam de se enlouquecer mais um bocadinho, seja a vaguear na cidade sem destino, seja na procura do encontro dos lábios, ou numa espera desnecessária.
sempre a esticar um bocadinho mais a loucura. talvez devesse ter trazido um livro, não é igual ler no telemóvel, pensa, não é igual. fica a faltar o jogo de sedução que se faz com as páginas, o peso do que já se leu na mão esquerda, não é igual.
estas paredes estão mal pintadas, pensa, que raio de psiquiatra tem umas paredes assim onde os loucos esperam. a menina atrás da secretária sorri sem motivo para todos os que entram, coitada. se não é louca deve estar lá perto. pede-lhe que preencha um formulário, empresta-lhe uma caneta, sempre sorridente. aguarde um bocadinho que o doutor deve estar a chegar.
pensa em que dia terá ficado louco, não tomou nota na agenda. não percebe efectivamente como isso aconteceu. mas a loucura é uma coisa que faz doer o corpo todo. a loucura é uma espécie de pneumonia da alma. vai dobrando os sentidos até que reste uma pedra a atravessar a garganta. é difícil ser louco e respirar ao mesmo tempo.
talvez se tivesse continuado a jogar à bola como o Marco e o André, nào tivesse chegado ali. andaria hoje de meias até aos joelhos e a bola vermelha debaixo do braço, tal como na infância. talvez as coisas tivessem sido mais fáceis se tivesse continuado a jogar à bola. ou se fosse advogado como o Tiago, sempre com pressa, sempre com papéis à volta. a acusar pessoas, a defender pessoas, a queixar-se do sistema judicial e a confessar que todas as estagiárias são uma putas. só querem foder por um contrato de trabalho no escritório mas ele lixa-as sempre, e orgulha-se disso. o Tiago não é louco, pensa, talvez por falta de tempo.
o doutor deve estar mesmo a chegar, diz a menina a sorrir atrás da secretária.