terça-feira, 9 de agosto de 2016

os monólogos (cadernos anteriores a 2003)

monólogo I: do fundo aberto

e se ficamos cegos por ouvir guns 'n roses
numa tarde de domingo em que nos apetece morrer mais uma vez,
encostados a uma parede branca da qual não conhecemos um fim,
se ficarmos cegos (mesmo!) sem vontade de escrever declarações de amor
em post-it's exageradamente amarelos ou de gritar
os nomes de todos os corações ensaguentados que fomos perdendo pelas ruas,
não importa.

se me dizias que os meus olhos eram a fenda imensa do teu sangue e eu acreditava,
não vai doer nada saber.

que este amor nasceu do vómito.

o nascimento dessa vénus ilegítma já não arranca carne dos braços [da noite]
quando o vazio preenche o esquecimento e a loucura.

E tudo começou in the midle of fucking nowhere,
oh meu amor era um garden de uma palácio de vidros partidos onde tu gritavas:

-vamos morrer meu fucking love,
fumar um cigarro a meias antes de morrer meu fucking love.
depois cortávamos os pulsos um do outro
e fumávamos o vácuo intenso da floresta despida até aos ossos.

quando me arrancavas a lama da boca com os dentes
e me deixavas ser o primeiro inverno do teu corpo.

-nunca mais te empresto a alma nem te digo qual é o lado mais sujo da minha voz,
não te deixo mais cuspir-me na pele, não!
nunca mais, nem te permito contares segredos aos meus dedos.

era diferente amanhecer numa pensão barata de paris,
com as vozes das putas nas escadas de madeira podre em frente ao quarto
 tu dizias que as putas são assim.
era diferente ver a chuva através dos buracos na parede que davam para o passeio das
traseiras e fumar coca com a chávena de café na mão.

e ver a luz nascer-te nos ombros
(sim! eu via a luz nascer-te nos ombros, e nos olhos às vezes)

e depois?
depois?
recortar maços de tabaco até às 3 da tarde
e comprar smarties numa loja ranhosa do fim da rua.

it's a nice day to start again.

era diferente quando ouvíamos Prince no restaurante chinês
e líamos Al Berto nas confeitarias,
quando os táxis demoravam demasiado a chegar ao outro lado da cidade,
perto do mar onde me falavas da noite e da saliva.
era diferente quando mulheres de 40 anos se atiravam da ponte
e eu ficava sempre a ver-te partir.

um dia disseste que o amor são caixas vazias
-my fucking love... empty boxes. e nada.

nada.
nada.
nada.


sabes quantos rios moram agora nas ruas?
quantas cartas me morreram nos lábios?
todas.
que cada palavra transporta uma ausência suja.

.como os néones e os gritos.


- my love eu não posso ser nada para além de mim.
por muito que me rasgues as veias do coração.


monólogo II: dos navios dispersos

vês? é como se de repente ao descer uma qualquer rua do teu corpo
o medo me atropelasse e me despisse de todos os significados

nada é mais simples do que gostar de ti
é o teu cabelo que me pesa nos ombros
quando descemos devagar os 31 dias de janeiro,

pergunto-te se me queres ver atear este fogo no mais que te posso dar das minhas fraquezas,
não consigo derrotar este cigarro que me amarrota os dedos
e, às vezes, uma mulher sem asas pernoita no mais nojento de mim

não nos habitaremos nunca mais na pérfida insinuação dos corpos
as paredes brancas dos pulmões representam agora o que restou desta paixão.

a saliva tem o teu nome e nada se move em redor da boca
da casa restam os sacrifícios diários de apagar-te.
o café, os lírios, mentol nos dedos, um comboio na habituação das horas
não vês? as ruas a incendiar da tua memória, a tua nudez derrotada nos abismos.
eu vejo a luz esbatida de quem vai morrer fora do seu cadáver
os fragmentos da guerra matinal de emergir na fatidíca sensação de existir
além das palavras.

já não são árvores na coexistência dos sentidos, gritas mãe gritas raiva
e só as doenças te ascendem ao rosto.


monólogo III: das doenças nocturnas

"as pessoas não acordam os sonhos",
repetia enquanto o fim da rua me parecia cada vez mais longe.
Rua 5 de Outubro:
caminho devagar e o cigarro caiu-me antes da última passa,
disse foda-se e acendi outro,
é como se me doesse ainda a música de ontem
o dia parado entre os átomos
aproximámo-nos da janela pequena e acendi um l&m,
deste-me um beijo e eu sorri,
não gostas que a minha boca tenha o sabor do tabaco.
não disse nada mas lá fora chovia
não sei se notaste mas havia um baloiço
e as feridas já tinham cicatrizado nos meus braços.
há muito que estavam os carros parados
e as pessoas no café a conversar sobre futebol
eu pensava-te e repetia o teu nome como se estivesses longe,
estavas ali e as pessoas dançavam, o copo esteve toda a noite
no parapeito com cerveja até meio.
já te tinha perdido o rasto muito antes de te encontrar,
senti-o mas não disse
não disse nada e ela puxou-me para dançar
e ria-se como uma louca
eu olhava para ti e tu fumavas
passavas as mãos no cabelo às vezes
e eu sentia tudo a tremer dentro de mim.
era mais fácil esquecer-te agora se as fotografias
não me dissessem o teu rosto.
na rua 5 outubro há casas abandonadas e casotas sem cães.
tu disseste que ela era bonita e te amava
e eu não.
eu não disse nada.
eu mandei-te foder baixinho.
tu não ouviste.
os teus olhos traziam todo o sono e humidade do mundo,
lembro-me de ver o nascer do sol e tu à minha frente.
lembro-me de fugir dias depois.
lembro-me de nunca mais te ver.


monólogo IV: da fertilidade do vazio

dói-me a cabeça,
sei que tinha o teu nome escrito numa página deste livro
mas não me lembro.
esqueci o teu nome mas tinha previsto este dia.
acenderia todos os cigarros para despertar a memória
e nada me viria à cabeça, só o negro do asfalto
as linhas amarelas sem continuidade,
eu a perder-me mais e mais no sentimento da água.
no meu sonho tu abrias a porta e não sorrias
(nos meus sonhos tu nunca sorrias)
às vezes era eu que te abria a porta,
era eu que abandonava a casa
depois de abrir todas as janelas
era eu que fugia e nunca mais sabias de mim.


nunca me preocupei muito com o que pudesses sentir
sinceramente, pouco me importam as tuas angústias.
e quase consigo acreditar nisto quando repito muitas vezes.


hoje o trabalho correu bem, não doem as pálpebras, não tenho sono
as pessoas foram simpáticas comigo e agradeceram a competência
das palavras bonitas.
continuei sozinha depois das pessoas e das palavras,
não fui atropelada em nenhuma rua sem semáforos
mas tenho a cara desfeita e chamo uma ambulância
mas ninguém vem.

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